HISTÓRIA DA MEDICINA | artigo 13 |
Hospital Real Militar da Bahia – 4 de outubro de 1799 é a verdadeira e exata data da sua criação. (*) | |
Antonio Carlos Nogueira Britto Vice-presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins, fundado em 29 de novembro de 1946 |
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Conferência recitada no Anfiteatro Alfredo Britto, na Faculdade de Medicina da Bahia, no Terreiro de Jesus, em 13 de novembro de 2003, na abertura do VIII Congresso Brasileiro de História da Medicina, realizado no período de 13 a 15 de novembro de 2003, promovido pela Sociedade Brasileira de História da Medicina | |
Bem sei eu que outro orador e não
um obscuro e humílimo médico d’aldeia, deveria tomar
esta missão; mas estou aqui encorajado pela deferência do ilustre
e ilustrado presidente da comissão organizadora deste congresso,
gentil-homem por excelência, o notável cirurgião e Professor
Emérito pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia,
Doutor Geraldo Milton da Silveira, mestre caríssimo de muitas gerações
de eminentes cirurgiões. Da mesma maneira, presente aqui estou em
função do instado convite, da confiança depositada
e da esperança desejada pelo mui erudito e ínclito Doutor
Lamartine de Andrade Lima, insigne especialista na “ciência
de Zachias”, fiel e denodado seguidor da famosa escola Médico-Legal
da Bahia e dinâmico e zeloso presidente do Instituto Bahiano de História
da Medicina e Ciências Afins, fundado a 29 de novembro de 1946. Outrossim,
galardoado fui ao receber e apoio do celebrado cientista baiano, Professor
Doutor Roberto Badaró. Sua vida consagrada às acrisoladas
consagrações pelas pesquisas das ciências médicas,
há de permanecer nos anais universais das sociedades da arte de curar
como um egrégio modelo de virtudes científicas.
Involuntariamente, por certo, estão a destacar, distintos mestres, a minha insignificância com as suas extremadas benevolências de homens de muito saber e as finezas de amigos e protetores. Meus caríssimos preceptores, historiadores Geraldo Milton, Lamartine Lima e Roberto Badaró: se os bons desejos que me dão energia e coragem ante situações aflitivas e difíceis, e as crenças que tanto prezo, podem ser um título a satisfazer as vossas expectativas, eis o que de do melhor grado estou decidido a patentear. Inobstante, envaidecido e honrado sinto-me, pois, pela oportunidade de, neste memorável congresso, iniciar a desenrolar esta página da crônica brilhante da história da medicina brasileira. Excelentíssimas e Senhoras e Senhores. Ao pedir vênia, devo aproveitar o ensejo que se me oferece para saudar o Professor Doutor Ulysses G. Meneghelli, eminente presidente da egrégia Sociedade Brasileira de História da Medicina, lisonjeando-me em manifestar o sincero testemunho de grata homenagem. Espero que o Professor Meneghelli me ampare com a sua indulgência e que a sua sapiência fecunde as minhas palavras. Digníssimo senhor presidente deste congresso, respeitáveis circunstantes nesta douta assembléia, congratulo-me com as vossas alegrias e júbilos no solenizado encontro da História, que agora se inicia, e que haverá de ser memorável, e muito me penhora a benevolência com que receberdes e a atenção com que escutardes a conferência que principio. Os congressos que estão a celebrar, promovidos pela Sociedade Brasileira de História da Medicina, não são pompa sem valia, nem ostentações vãs, nem mesmo aparato infecundo. Eles são uma projeção de claridade sobre o túmulo de gerações imortais de médicos, enfermeiras e enfermeiros, farmacêuticos, odontologistas, veterinários, cientistas e pesquisadores, para avultarmos pela História a grandeza dos seus feitos ilustres e das ações memoráveis com a eloqüência das suas lições impregnadas de heroísmo e pioneirismo das sagas épicas, por eles narradas, sobre a medicina e ciências anexas de antanho. Tais congressos são um motivo para fazermos um inventário à herança do tempo que passou, afim de melhor orientarmos o presente e alumiarmos o futuro. Miasmado pela atmosfera asfíxica e misteriosa do mundo fascinante dos arquivos, ao manusear manuscritos originais e inéditos, raros e preciosos, em aparente estado virginal, não obstante se encontrarem avelhados, escurecidos e esmaecidos pelo cursar inexorável do tempo, corrompidos por traças e fungos, jazendo em maços e afixados em livros encadernados e empoados, deixo-me enfermar e contagiar pela febre da pesquisa dos períodos pretéritos, que leva ao delírio e quimérica sensação de estar vivendo em plena Bahia colonial e provincial nos séculos XVIII e XIX. Senhoras e Senhores, esforçar-me-ei para expor, em traços
largos, a vida fascinante do Hospital Real Militar da Bahia, pois a infinita
ampulheta do tempo não permite a apresentação, narrada
por miúdo, da sua história e trajetória, do seu primórdio,
até a exposição da realidade do dia-a-dia do sobredito
hospital, no período de cem anos, quando foi criado e destinado
à assistência médico-hospitalar às tropas pelo
estipêndio da Coroa de Portugal. A 1º de fevereiro de 1549, zarpava de Lisboa, em direitura ao Brasil, sob o comando-mor de Thomé de Souza, designado para primeiro governador geral do nosso País, esquadra de três naus grandes, duas caravelas e um bergantim, chegando a terra brasis em 29 de março do dito ano. Vindos na Armada, 600 soldados, primeiros militares aportados na Bahia para a azáfama de proteção ao numeroso grupo de funcionários que comporiam o Governo Geral. Achacados os soldados e marinheiros, seriam assistidos pelo físico da expedição, Jorge Valadares, o primeiro físico e cirurgião da cidade que estava em construção, empossado por Thomé de Souza, e ajudado pelo primeiro boticário, Diogo de Castro e auxiliados pelo grupo de seis inacianos chefiados pelo padre Manoel da Nóbrega, sendo o atendimento realizado nas casas dos jesuítas e no Hospital da Cidade, o primeiro a ser fundado pela Casa da Santa Misericórdia na cidade da Bahia. A partir de 1625, foram criadas guarnições coloniais compostas de companhias ou de terços, sendo que o primeiro dos ditos terços veio de Portugal para libertar a cidade da Bahia da ocupação batava. A Colônia só veio a ter um exército regular depois de 1764. A primeira guarnição estabelecida na Bahia em 1625, depois conhecida como Terço Velho, compunha-se de 1000 homens distribuídos em dez companhias de cem soldados cada uma, deixadas aqui por D. Fradique de Toledo Osório, depois de expulsos os holandeses. Seis anos mais tarde, foram acrescentados ao Terço Velho mais 300 soldados e seus oficiais, vindos de Portugal, até completar-se o Terço Novo sob o comando de D. Antonio de Oquedo. – Terço corresponde à legião dos romanos e ao regimento dos alemães e franceses. É a terça parte de um regimento. Seu comandante, chamado de mestre-de-campo, passou a ser chamado de coronel. Em 1798, havia na cidade da Bahia, dois regimentos de Infantaria de Linha, e um de Artilharia. Nos terços, ou regimentos, os enfermiços militares eram curados em enfermaria acanhadas. Todavia, já era a tropa atendida desde 1549 no primeiro hospital da cidade do Salvador, da Casa da Santa Misericórdia, que tinha como provedor Diogo Muniz. O sobredito nosocômio, que foi construído com o apoio do governador Thomé de Souza, já estava em pleno funcionamento, consoante documento com data de 5 de outubro de 1549. Primitivamente chamado pela própria casa pia e pelo povo de Hospital da Cidade do Salvador, mais tarde conhecido como Hospital São Cristóvão, estava instalado em condições modestas e rudimentares, de paredes de taipa de mão. Em 1755, eram precárias as condições da Misericórdia, que praticava “tantos exercícios de caridade cristã e do bem público”. Duzentos réis diários não eram suficientes “para curar bem um soldado em país em que tudo é caro”, dizia a Mesa administrativa. A Santa Casa não podia suportar encargo com remuneração tão pequena e registava a “consternação em que os põe o curativo dos soldados da Praça da Bahia dando-lhe por cada hum duzentos réis por dia”. 1758 – O Conselho Ultramarino pedia a soma de 400 réis diários para cada enfermado soldado em tratamento no hospital da Misericórdia. Havia o precedente de uma concessão análoga em relação as doentes que chegaram à Bahia nas naus da Índia e nas fragatas de guerra. Pelas informações do vice-rei e do procurador da Fazenda, 200 réis era verba insuficiente para o tratamento e manutenção dos soldados. Em 1761, as dependências do Hospital da Santa Casa achavam-se divididas em enfermarias da caridade, milícias da praça e equipagem das naus da Coroa. 1763 – Preocupava-se a casa pia com o tratamento dos marinheiros das naus de guerra, pois naquele ano saíram as naus, deixando os marítimos valetudinários na Santa Casa. Pagaria o erário real as despesas? Em resposta à representação da Mesa da Santa Casa, com data de 16 de janeiro de 1763, o Conselho Ultramarino, em 14 de março do dito, concordou que a pia casa tinha direito de receber as quantias despendidas com tais tratamentos, partidas as fragatas. Os cirurgiões curavam os oficiais e soldados do terço. Assim, como achega, reporto-me á carta do rei de Portugal, de 15 de agosto de 1738, para o governador-geral do Brasil, André de Mello e Castro, conde das Galveas, 5º vice-rei e capitão-general de Mar e Terra do Estado do Brasil, quando ordena que acrescentasse ao cirurgião André Alvinho a quantia de seis mil réis, a título de ajuda de custo, pela obrigação de curar os oficiais e soldados do Terço de Artilharia; em 16 de setembro de 1797, José Caetano de Sá solicita nomeação para o posto de cirurgião-mor do Segundo Regimento de Infantaria da praça da Bahia. A rainha D. Maria I, que desde a morte de seu tio e marido D. Pedro III,
em 1786, ficara enfraquecida da razão, criara a Junta do Protomedicato
em 17 de junho de 1782, que tinha como comissário na Bahia o beirense
Manoel Fernandes Nabuco, responsável pela função
de examinar, nesta cidade, os candidatos ao título de cirurgião
e de fiscalizar o exercício da medicina. Pela Carta Régia
de 7 de dezembro de 1779, foi investido das funções de cirurgião-mor
do Regimento de Infantaria da Guarnição da Bahia. 1776 - O governador e capitão-general da capitania da Bahia, Manoel da Cunha e Menezes, recebeu alerta em ofício de 12 de agosto de 1776 de Martinho de Mello e Castro, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, informando que um grande armamento, com oito regimentos castelhanos de tropas de transporte se preparava em Cádiz, cidade portuária da Espanha, com destino em parte ou em todo a surpreender a cidade da Bahia com bombardeamento e desembarque. Naquele mesmo ano de 1776, mandou Carlos III, rei de Espanha, uma segunda frota contra o Brasil, comandada por D. Pedro de Ceballos, vice-rei de Buenos Aires, que de novo ocupou a região do Prata, pois, três anos antes, em 1763, o mesmo general espanhol havia ocupado a colônia de Sacramento e as pequenas fortalezas do arroio Chuy, para invadir o Rio de Janeiro, ato que foi reparado pelo tratado de Paris, no mesmo ano. O governador rapidamente fortificou a cidade, e procurou, de imediato, um lugar cômodo e abrigado para os feridos e escolheu o convento ou hospício da Palma, dos frades “Agostinhos” (Agostinianos) Descalços, que estava desabitado. Durante a diligente preparação para transformar o hospício da Palma em hospital militar, experimentou esta cidade o terrível contágio das “bexigas”. Imediatamente o convento foi destinado para funcionar como um hospital para socorrer os enfermados pela epidemia. Não escapou das “bexigas” a tropa tanto paga, como auxiliar, que junta estava para a defesa. No Hospital Militar da Casa da Misericórdia, consistindo em uma só enfermaria, em que apertadamente cabiam 70 camas, sem que houvesse lugar de poder fazer-se outra, cresciam os doentes todos os dias, que chegavam ao número de 400. O contágio das “bexigas” exaltou-se, por deitarem em cada cama 2 e 3 enfermos, uns em esteiras pela coxia da mesma enfermaria e debaixo da arcada, que formava o claustro. Diariamente morriam muitos soldados e índios, homens moços, pois era raro o que escapava da morte tendo entrado no hospital da Casa da Misericórdia. A calamidade obrigou os médicos a procederem a transferência dos atacados de epidemia para o Colégio, que tinha sido dos jesuítas, expulsados pelo Marquês de Pombal e os feridos e os que padeciam pequenas moléstias foram recolhidos no neo hospital do hospício da Palma. Enquanto durou a força da epidemia, foram conservados os 2 hospitais
citados e logo que se conheceu que “hia a menos”, juntaram
todos os doentes no Colégio dos inacianos em diferentes enfermarias
e ficou o hospício da Palma para convalescença, que continuava
como hospital em 1779, administrado pela Santa Casa, e que prosseguia
em atender os soldados, em conjunto com o hospital militar instalado muito
precariamente no Colégio, naquele tempo também administrado
pela pia casa até 1780 e, mais tarde, desativado, fato que motivou
a concentração de assistência aos soldados no nosocômio
que, posteriormente, foi chamado de Hospital Militar do Quartel da Palma. Logo, cabe aqui uma advertência e esclarecimento: sou humílimo pesquisador e cientista da História. Meus laboratórios, livros e microscópios são os arquivos empoeirados, os centenários manuscritos, originais e corroídos pelo tempo e pelas traças e uma lupa. A pesquisa de antanho é dinâmica e, portanto, apresenta resultados mutáveis. Assim, anunciei duas datas da instalação provisória do hospital em estudo: 1779 e, mais tarde, 1778. Minhas pesquisas em manuscritos, mui recentíssimas, obrigaram-me a reconsiderar a informação das sobreditas datas. Vejamos: 1776 foi a época da 2ª invasão castelhana contra o sul do Brasil; em 12 de agosto do mesmo ano, 1776, o ministro reinol alertou sobre um ataque de tropas da Espanha, vindas de Cádiz, contra esta capital; a peste das “bexigas” surgiu quase ao mesmo tempo do aviso e das medidas de fortificação para conter o invasor. Assim, a proteção militar da cidade foi levada a efeito paralelamente às providências para transformar o abandonado hospício da Palma e o extinto Colégio dos jesuítas em hospitais militares. Considerando a simultaneidade das diligências de defesa militar e médico-hospitalar, infere-se que o Hospital Real Militar funcionou, emergencialmente, e de maneira temporária, pela vez primeira, no antigo Colégio dos jesuítas, na última quadra de 1776, isto é, entre setembro a dezembro de 1776. Outrossim, na possibilidade da inexistência de outros registros sobre a epidemia de varíola na capitania da Bahia durante o sobredito período, porquanto até a presente data nenhum documento foi por mim encontrado a respeito da “peste das bexigas” na derradeira quadra do reportado ano, a carta pesquisada tem extraordinário valor para a história da epidemiologia baiana no século XVIII, quando informa sobre a referida calamidade no final de 1776. Em 7 de junho de 1777, a Casa da Santa Misericórdia preocupava-se “com a proxima novidade de seaver separado da administração desta Santa Caza o Hospital da Palma rezervado somente para os doentes de feridas modernas, doenças modicas de pouca intindade (sic) e convalescentes do Hospital do Collegio.” Aviso de Lisboa, em 18 de junho de 1777 de Martinho de Mello e Castro, dirigido a Manuel da Cunha Menezes, comunicava haver-se ajustado entre a Corte de Madrid e a de Lisboa, uma cessação de armas e hostilidades. 29 de maio de 1780 – O governador e capitão-general D. Affonso Miguel de Portugal, Marquês de Valença, em carta com a sobredita data, endereçada ao ministro reinol Martinho de Mello e Castro, era favorável aos padres da congregação do oratório de São Filipe Néri, de Pernambuco, que pretendiam aumentar o seu pequeno hospício no sítio da Preguiça, no bairro da Praia, utilizando o antigo Colégio, onde ainda estava funcionando, precariamente, o Hospital Real Militar, administrado pela Santa Casa, o qual, segundo a proposta, seria transferido para o hospital da Misericórdia, mui assaz acanhado e cheio, em todo o tempo, não sendo, todavia, concretizada a reivindicação. Em 17 de março de 1797, a abadessa do convento de N. S. da Conceição da Lapa, sóror Maria Custódia do Sacramento, enviou carta para D. Rodrigo de Souza Coutinho, em que lhe pedia para não ser construído junto do seu convento o planejado edifício do Hospital Militar, rogando remover para o lugar primeiro projetado ou para qualquer outro que não seja contíguo, pelos inconvenientes ponderados. Em 6 de julho de 1798, entraram neste porto 15 navios da Companhia da Companhia Inglesa das Índias, armados em guerra, os quais antecedentemente se esperavam, comboiados pelo Heytor, nau de 74 peças, comandada pelo capitão-de-mar-e-guerra Robert Montague. O governador D. Fernando José de Portugal, recepcionou o dito oficial e o comandante da tropa general Clarke e “destinou o Collegio que foi dos Jesuitas para se restabelecerem os soldados doentes.” O arcebispo da Bahia D. frei Antonio Correa remeteu ofício de 21 de setembro de 1799 para D. Rodrigo de Souza Coutinho, no qual se refere à resolução do governador de estabelecer um hospital no edifício do antigo Colégio dos jesuítas. Dizia que, expulsos de Portugal os jesuítas em tempo de Sé vaga, recebeu o cabido ordem de Sua Majestade para tomar conta da Igreja, lamentando a resolução do governador de se fazer no Colégio um hospital. E entristeceu-se por não poder estabelecer um seminário no Colégio, cuja fundação dizia ser absolutamente necessária. Em anexo ao sobredito ofício, o arcebispo discorreu sobre as diversas situações em que tivera o Colégio, desde a expulsão dos jesuítas. Informava que havendo no ano de 1776 a necessidade de se separarem as ruínas do frontispício, e torres da Sé, o cabido começou a oficiar interinamente na igreja do Colégio. Naquela ocasião alguns capitulares e capelães ocuparam parte do edifício, com a vantagem da sua melhor conservação, os quais se retiraram mais tarde. Continuou assim o Colégio, até que o governador Manoel
da Cunha Menezes pediu ao antecessor do arcebispo lhe permitisse recolher
na referida casa os militares enfermos que havia convocado à cidade
por causa da invasão que se temia dos castelhanos, tornando-se
incompatível a permanência dos capitulares e capelães
com a estada dos soldados, que finalmente a ocuparam toda, ainda dependente
de se transferir o resto dos doentes para o Hospital da Misericórdia.
Ficou só no Colégio o tesoureiro-mor, eclesiástico
do cabido, “por ser anexa a dita Dignidade” a inspeção
do “precioso” da igreja. E lamentava o arcebispo: - “Quanto
sofreu aquele bom e honrado velho com o hospital dos militares que por
causa dos enfermos ali habitavam. Quanto ainda mais os dois que o sucederam
no ministério e na aflição!” Retiram-se finalmente os militares. Entra outra tropa diferente. O Colégio dos extintos jesuítas começa então a encher-se, continuadamente, de todo o tipo de indivíduos de ambos os sexos. “Que público o escândalo, que grande a ruína dos quartos e corredores do edifício!” - lastimava o arcebispo. Tudo sem o seu consentimento, “antes”, segundo ele, “com suma repugnância.” Não podendo o arcebispo “dissimular” tal “desordem em si abominável, e ainda mais por ter sido antes aquela uma casa religiosa”, requereu ao governador a fizesse evacuar. “Evacuou-se toda prontamente. Que pouco durou esta mudança.” Recomeçaram todos os condenáveis sucessos. Aumentaram em número os intentos para entrarem no Colégio e o ocupar novamente como casa de residência. Homens e mulheres. “Uma mulata”, contava o dignitário eclesiástico, “é a primeira introduzida naquela casa pelo desembargador, que então também era intendente da policia”. “Quanto procurou o tesoureiro-mor o apartar essa entrada.” Rogou, irritou-se, nada conseguiu, dizia, consternado, o arcebispo. Em todo aquele longo período de tempo, nem um só homem,
nem uma só mulher foi admitida no Colégio pelo arcebispo.
Nele imperou não só o “gênio”, mas também
“a razão”, não querendo dar exemplo, ou cooperar
para uma introdução, que ele, pelo mau uso, abominava. Não
reprovaria se houvesse seleção, queria dizer, se fosse aceito
o pobre, e o pobre de bom conceito, com a condição logo
de ser expulso o que abusasse do favor. D. frei Antonio Correa, 11º arcebispo da Bahia, tomou posse em 24 de dezembro de 1781 e faleceu nesta capital em 12 de julho de 1802. Sucedeu ao 10º arcebispo D. Joaquim Borges de Figuerôa, falecido na cidade da Bahia em 25 de setembro de 1778. Em 4 de outubro de 1799, D. Fernando José de Portugal escreveu a D. Rodrigo de Souza Coutinho, a respeito do ofício daquela autoridade, com data de 16 de junho de 1797, que tratava do assunto da construção de um hospital militar que ficaria devassando o convento de N. S. da Lapa, esclareceu-lhe que “pondo-se algumas grades, ou outras separadas nas janelas em que fosse precizo, cessa o motivo da queixa com a resolução que tomei de mandar consertar para este fim, o Colégio de Jesus dos extintos Jezuitas, de que dou conta a Vossa Excellencia nesta occazião em Carta separada.” Senhoras e Senhores, é chegado o momento de resgatar a verdade em derredor de importante data histórica: a exata e real data da criação oficial e instalação definitiva do Hospital Real Militar. Ilustrados avoengos e coevos historiadores, anunciavam 18 de fevereiro de 1788 como o período oficial da criação do Hospital Real Militar da Bahia, por determinação do governador e capitão-general D. Fernando José de Portugal. Aceitando como verdadeira a informação, cheguei mesmo a divulgar a sobredita data. E outros estudiosos procederam da mesma maneira. A errônea época está consignada em monografias a respeito. Ademais, examinei exaustivamente, sem êxito, catadupas de fontes primárias e secundárias impressas. Os manuscritos originais, até então, nada revelavam. As fontes secundárias impressas não apresentavam nenhuma referência. Não logrei resultado feliz na busca incessante, que chegava aos limites da compulsão. Havia flagrante contradição na data divulgada amplamente. Ora, D. Fernando José de Portugal aportou à cidade da Bahia em 17 de abril de 1788 e tomou posse do governo em 18 de abril do dito ano, 1788. Por conseguinte, não poderia o governador criar o Hospital Real Militar em 18 de fevereiro de 1788. Creio que algum historiador, inadvertidamente, incorporou a data da fundação da Escola de Cirurgia da Bahia - 18 de fevereiro, à chegada de D. Fernando José de Portugal à Bahia - 1788. Senhoras e Senhores, irei agora anunciar a verdadeira data da criação do Hospital Real Militar da Bahia. Em 4 de outubro de 1799, o governador D. Fernando José de Portugal emitiu ofício para D. Rodrigo de Souza Coutinho, Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos. Dizia o governador: “Como hum dos grandes inconvenientes que tinha o curativo na Santa Casa da Misericórdia era a falta de accomodações por não haver caza de convalescença, nem enfermarias separadas para certas molestias contagiosas e outros commodos precizos para a regência do mesmo hospital, muito mais achando-se alli tãobem estabelecido o da caridade, em que se recolhe toda a pobreza de ambos os sexos, lembrei-me de que com alguma despeza, se podia fazer hum bom hospital no Collegio de Jesus dos extintos Jesuitas, aproveitando para este fim hum edificio nobre, e evitando-se desta sorte a maior despeza de hum novo hospital, que fica sendo desnecessario, e para que esta obra se fizesse com toda a economia possível foi encarregado de sua inspecção Francisco Gomes de Sousa, contador da Real Fazenda, que actualmente está servindo de Escrivão d’ella, por se confiar do seu zelo e actividade conhecida, o desempenho desta commissão, a que já se deu principio, esperando-se que dentro de hum anno pouco mais ou menos, fiquem os doentes alli recolhidos... “ Portanto, 4 de outubro de 1799 é a verdadeira e exata data da criação do Hospital Real Militar da Bahia. O funcionamento do Hospital Real Militar teve início em setembro
ou outubro de 1800, porquanto em 17 de setembro de 1800, ofício
do Palácio de Queluz dava conta do requerimento de Jozé
Soares de Castro, solicitando o cargo de cirurgião-mor do Hospital
Militar desta cidade e se considerarmos também que o médico
Luiz Fernandes de Alvarenga havia solicitado emprego no Hospital Militar,
consoante ofício de D. Rodrigo de Souza Coutinho para D. Fernando
José de Portugal em 1º de outubro do mesmo ano. Ademais, o
requerimento do “Químico Pharmaceutico” Domingos José
Correa, no qual pedia que lhe fosse dado o fornecimento de drogas que
necessitasse o Hospital Militar e que fossem precisos para o tratamento
das equipagens das naus e fragatas da Coroa, pondo a botica a sua custa,
resultou em ofício do governador D. Fernando José de Portugal
ao Palácio de Queluz em 13 de junho de 1800, quando asseverava
que “ ... quando se concluir o novo Hospital Militar, que será
com brevidade, se hade nelle estabelecer Botica por conta da Fazenda Real...”. Dado no Palácio de Queluz aos 7 de Agosto de 1797, e registada na Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, com a assinatura do “Principe com Guarda”, a rainha D. Maria I, que ficara enfraquecida da razão desde a morte do seu tio e marido D. Pedro III, em 1768, foi servida mandar criar um Regulamento Econômico e Militar de seu Exército em tempo de campanha. O cirurgião-mor Jozé Soares de Castro, inspirado no referido documento e no “estillo e formalidade recomendada por S.A.R. no Regulamento impresso em 1805, para os Hospitaes Militares;” e “cingindo a ele no que lhe parecia aplicável”, tracejou e apresentou a “memoria” que “poderá servir de Regulamento” para o Hospital Real Militar da Bahia, em 13 de setembro de 1809, portanto 1 ano e 7 meses depois da criação da Escola de Cirurgia da Bahia. Em 1806, seis anos após o início do seu funcionamento rotineiro, o Hospital Real Militar da cidade da Bahia, que estava subordinado hierarquicamente ao governador e capitão-general, era administrado pelo médico, “Sargento Mor Inspector Caetano de Abreo de Lima Alvarenga”, e o seu quadro era constituído do cirurgião-mor Dr. Jozé Soares de Castro; um médico, Dr. Luiz Fernandes Alvarenga; dois cirurgiões ajudantes, procedentes de regimentos, que poderiam ser auxiliados por outros colegas, em caso de necessidade; dois enfermeiros (“Se preciza detres Enfermeiros mais para obom arranjo deSetenta, eSete duentes, por estarem muito malServidos Com hum Só;”) – solicitou o Dr. Jozé Soares de Castro. Tinha também um capelão. – O dito cirurgião-mor prevê a necessidade de dois boticários, primeiro e segundo; dois escriturários; um almoxarife; um fiel de almoxarife, denominado roupeiro; mapistas; uma Guarda comandada por um oficial militar e um porteiro – (Na quinta-feira, 14 de maio de 1807, era motivo de preocupação para o sargento-mor-inspetor do Hospital Real Militar: “He da instituição deste Hospital não deixar entrar mulheres denoite avizitar doentes. Estando permitido entrarem de dia as Mays aos filhos, e as Legitimas mulheres aSeos maridos. O Padre Capellão deste Hospital metem reprezentado por vezes ogrande prejuizo espiritual, eCorporal dos duentes, proveniente das vizitas nocturnas demulheres de qualquer Condição que sejão, pelas Cauzas que elle Cala”). Quinta-feira, 12 de março de 1808 – Outro manuscrito precioso
e raro, por mim estudado, revela a descrição inédita
e fiel da primeira sala de aula destinada a Escola de Cirurgia da Bahia,
instituída a 18 de fevereiro de 1808. A dita sala estava instalada
no Hospital Real Militar da Bahia e o seu sargento-mor-inspoector dirige-se
ao governador e capitão-general João Saldanha da Gama Mello
e Torres, sexto conde da Ponte: Nas enfermarias do épico Hospital Real Militar da cidade da Bahia, desde a sua instalação na última quadra dos Setecentos, viam-se lágrimas dos enfermos que estavam prestes a resvalar para os mistérios dos túmulos. - As lágrimas se tornaram uma herança universal. - Temos lágrimas no albor da vida, acompanham a nossa romagem no orbe terráqueo e ainda regam os ciprestes fúnebres que cobrem com sombras o sepúlcro. - Os grandes lancinamentos da dor que formam o longo sudário das aflições humanas eram objeto das solicitações piedosas dos médicos militares, dos enfermeiros e dos boticários que balsamizavam feridas e derramavam consolações nos corredores e enfermarias do Hospital Real Militar. Nos dias temerosos de guerra, quando as cidades se tornam fortalezas e os prados se transformam em acampamentos militares, quando a grita das lides e a fumarada e ribombar da artilharia formam lagos e rios de sangue, onde fazem eco o coro dos feridos em combate, quem cuida dos caídos? No ocaso dos Setecentos e nos albores dos Oitocentos, olhai para dentro das enfermarias do Hospital Real Militar da Bahia, instalado no velho Colégio dos Jesuítas, para dar leito e curativos, socorros e consolações aos que estão enfermos e feridos; ai vereis como o médico militar vive com os soldados, como escuta as suas reclamações, como os conforta e cura! Tudo se transfigura em bênçãos e se volve em suavíssimas consolações quando os médicos, o cirurgião-mor e seus ajudantes de cirurgia e enfermeiros visitam as enfermarias, onde reina a dureza do sofrimento e impera o jugo das dores! Assim, poderemos proclamar benemérita a missão do Hospital Real Militar da Bahia. Destarte, não houve uma lágrima que o sudário da comiseração não enxugasse nem uma ferida que o bálsamo da caridade não cicatrizasse e não se levantou um gemido sem que se fizesse eco num generoso coração.
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FONTES | |
FONTES MANUSCRITAS ORIGINAIS INÉDITAS | |
Arquivo Público do Estado da
Bahia – Seção de Microfilmagem. “Suplemento
de Catalogo de Documentos sobre a Bahia existentes na Bibliotheca Nacional
– Divisão de Obras Raras – Publicações
– 18 de junho de 1777 - Vol. 68 – Doc. 19 – N.º
6.269 do C. E. H. B. – I – 31,29,45” Arquivo Histórico Ultramarino – Conselho Ultramarino – 4 de julho de 1767 – Caixa 41 – Doc. Nº 7636 Arquivo Histórico Ultramarino – Conselho Ultramarino - 19 de janeiro de 1779 – Caixa – 53 – Doc. Nº 10.067 – 10.068. Arquivo Histórico Ultramarino – Conselho Ultramarino – 17 de março de 1797 – Caixa – 88 – Doc. Nº 17.192. Arquivo Histórico Ultramarino – Conselho Ultramarino –
21 de setembro de 1799 - Arquivo Histórico Ultramarino – Conselho Ultramario –
27 de agosto de 1800 – Arquivo Público do Estado da Bahia – Seção de Arquivo Colonial e Provincial – Guia da Colônia – Repartições e Autoridades Militares – “Hospital Real Militar” – Originais – (1805-1818) – Maço nº 435. Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia da Bahia – Livro de Registro de Expedientes – Nº 86 – 7 de junho de 1777 – pp. 6 – 6v; 7v. |
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FONTES SECUNDÁRIAS | |
FONTES IMPRESSAS | |
Silva, Dezembargador Antonio Delgado da – “Colleção
de Legislação Portugueza – Órdem Régia
– 7 de Agosto de de 1797 – Typographia de Luiz Correia da Cunha
– Anno de 1860 – Período: 1791-1801 – pp. 419-444.”
Arquivo Público do Estado da Bahia – Anais – ano 1985 – volume 48 – Volume LIV da Coleção de Ordens Régias – 1755 a 1756 – (Vol.54 – Doc. 58) p. 15. Arquivo Público do Estado da Bahia - Anais – ano 2000 –
volume 57 – volume LXXIV da Coleção de Ordens Régias
– 1770 – 1779 (Vol. 74 - Doc. 20) – p. 12. Silva, Coronel Ignacio Accioli de Cerqueira e, - Memórias Históricas e Políticas do Brasil - vol III – Imprensa Official do Estado – Rua da Misericórdia nº 1 - p. 20; pp. 10-13; pp. 20-21. Vilhena, Luís dos Santos – Cartas de Vilhena – Ano de 1802 - A Bahia no Século XVIII – Volumes (Livros) I e II – Notas e comentários de Braz do Amaral – Apresentação de Edison Carneiro – Editora Itapuã - Bahia- 1969 – vol. II, p. 415. Andrade, Maria G. L. de – Resumo da Historia do Brazil – The Athenaeum Press – Ginn & Company Proprietors – Boston – New York – Chicago – London – 1894 – p. 133; p. 135. Campos, Ernesto de Souza – Santa Casa de Misericórdia da Bahia – Origem e Aspectos de seu Funcionamento – Revista do Instituto Geographico e Historico da Bahia – N. 69 – 1943 – pp. 213 – 252. Azevedo, Thales de – Povoamento da Cidade do Salvador – Editora Itapuã – Coleção Baiana – 1969 – p. 300; p. 395. Barbosa, Mons. Manoel de Aquino Barbosa – Efemérides da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Praia – Coleção Conceição da Praia – Vol. I – 1970 – Salvador – Bahia – Composto e impresso na Editora Beneditina Ltda. Salvador – Bahia – 25 de setembro de 1778 – 9. 58; 24 de dezembro de 1781 – p. 60; 12 de julho de 1802 – p. 65. (*) Com o objetivo de enfatizar palavras-chaves para divulgação pela internet, o autor modificou o título original da conferência: “Hospital Real Militar da Bahia – Aspetos inéditos revelados pelas notícias compiladas de manuscrito original e inédito do Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, datado de 19 de janeiro de 1779”. |
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