HISTÓRIA DA MEDICINA artigo 19
MEDICINA LEGAL – BREVES NOTÍCIAS DE ALGUNS SUCESSOS INÉDITOS E INTERESSANTES DA CIÊNCIA DE ZACCHIAS NA BAHIA, DESDE 1806 - PARTE I
Antonio Carlos Nogueira Britto
Vice-presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins, fundado em 29 de novembro de 1946
Conferência recitada em sessão ordinária do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins, em sala do egrégio Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, em 14 de agosto de 2003.
Breves notícias pesquisadas em fontes primárias - manuscritos originais e inéditos - e em fontes secundárias, impressas, em derredor de alguns aspectos da Medicina Legal na província da Bahia.

Ilustres e ilustrados confreiras e confrades,

Antes de apresentar algumas notas inéditas respeitantes a sucessos ligados à ciência de Zacchias, desde o ano de 1806, na Bahia, permitam-me tornar mais ameno o início desta modesta preleção relatando fato assaz hilariante.

Nas minhas “costumeiras jornadas ao século XIX”, quase no ocaso de canicular véspero de uma segunda-feira, no dia 6 de fevereiro de 1860, após saborear opípara iguaria de “feijão come-calado”, regado a cerveja Triângulo de Bass, precatava-me do inclemente estio por meio de rico chapéu de sol de seda guarnecido com elegante cabo, de patente Parragon, alem de usar chapéu de “Chili” finíssimo, abas largas, copa alta, transado fino, trajando-me com “palitot” de esguião de linho branco e coletes, gravatas de seda, comprados à “Nouvautés de Paris”, na rua dos Droguistas, na cidade da Bahia.

Acompanhado dos inseparáveis amigos Fernando de Souza Pedroza, Lamartine de Andrade Lima, José dos Santos Pereira Filho e Alcilídio Barreto de Carvalho, celebrado e querido “lente jubilado” do “Collegio Médico-Cirúrgico da Bahia”, da mesma forma donairosamente trajados, sentei-me no aprazível “Café Restaurant” do Largo do Theatro, por cima da cocheira de carros, para saborear sorvete em sala para família, com entrada particular.

Comprei a gazeta “Diário da Bahia” daquele dia,” e perlustrei a interessante e singular coluna “Publicações a Pedido”, com o título “Roubo e Envenenamento”. Transcrevo, na íntegra, o assunto registado: “O abaixo assignado faz publico que achando-se bastante grave de sua saude, tanto que fazem hoje 12 noites que grita desesperadamente com dores atrozes como é sabido em suas correspondencias, previne aos Srs. Drs. da faculdade de medicina que no caso de morrer podem abrir seu corpo, e então ficarão todos conhecendo a sua verdade na imputação que faz ao sr. Sebastião Pinheiro da Silva Barbosa, lapidário, que envenenou-o para roubar a ridicula quantia de 3.000$000, suppondo que elle talvez tivesse um thesouro de Rotischild; mas enganou-se, só achou o que sempre se dizia a elle. Esta será a ultima correspondencia que escreve o abaixo assignado contra este monstro, porquanto o publico já está sciente quem seja o sr. Barbosa. Bahia 3 de Fevereiro de 1860 – José Felix de Mattos (Ao Diário da Bahia).”

Na manhã de sexta-feira, 10 de fevereiro de 1860, em companhia do meu bom Lamartine, que ansiava oferecer rico mimo a uma formosa rapariga, fomos ao salão de costuras de Madame Jaccard, costureira modista, que havia se mudado da rua Direita do Palácio para a rua do Pão-de-Ló, n.º 15 , 1º andar. Em lá chegando, Lamartine manuseou o “Diário da Bahia” do dia anterior e mostrou-me a resposta, anônima, à nota do sr. José Felix de Mattos: “A esterco-nina (stryquinina) – Roga-se ao maluco envenenado que offereceo o corpo á faculdade de medicina que offereça antes a alma ao diabo e deixe o corpo para mim para estercar o capim, visto não me ter pago ainda os 80$000 que tomou sobre o relogio, que não vale 40$000 e sem juro. - Diário da Bahia, 6 de Fevereiro de 1860.”
Cf. gazetas citadas: Biblioteca Pública do Estado da Bahia – Fontes Secundárias Impressas.

Caríssimos confreiras e confrades. Em traços largos, esforçar-me-ei para apresentar alguns sucessos em torno da Medicina Forense anciana, desde 1806. Devo manifestar no azo que se me apresenta, meus preitos aos precursores e egrégios lentes da ciência de Zacchias na Bahia. Com emoção própria de humílimo e insignificante pesquisador, nomeio os Doutores João Francisco de Almeida, Malaquias Álvares dos Santos, Salustiano Ferreira Souto, Francisco Rodrigues da Silva, Virgilio Climaco Damazio, Raymundo Nina Rodrigues, Josino Cotias, Oscar Freire, Álvaro Dória, Artur Ramos e Estácio de Lima.

Hoje, convivendo com seus amigos, colegas e confrades e a todos ilustrando e animando, os celebrados mestres Maria Theresa de Medeiros Pacheco e Lamartine de Andrade Lima, os quais, honrando-me sobremaneira, estão presentes a esta tertúlia do colendo Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins, anciano sodalício que é notável, desde 1946, em solenizar a epopéia dos sucessos e dos insignes vultos da história da Medicina da Bahia.

Nos séculos XVIII e XIX, os físicos e cirurgiões, convocados pela justiça ou pelo capitão-general das capitanias ou pelo presidente da província, realizavam perícias médico-legais, corpo de delitos, redigiam laudos e acompanhavam os castigos de açoites para verificar se o estado do condenado permitia continuar ou interromper a vergastada.

O cirurgião-de-Partido era estipendiado pelas Câmaras das cidades e vilas para exercer suas atividades médicas rotineiras, além de exames de “corpo de delicto” e perícias médico-legais.

O físico Willem Piso, no século XVII, da administração de Nassau, efetuou as primeiras necropsias no Brasil.
Cf. Lycurgo Santos Filho – História Geral da Medicina Brasileira – Vols I-II

No século XIX, poucas teses de doutoramento e monografias relativas a temas de Medicina Legal foram defendidas e escritas na Bahia:
Malaquias Alvares dos Santos: “Responsabilidade médica: lição do curso de medicina legal” – publicada no “Prisma”, série 2ª, 1855, e nos Anais Brasilienses de Medicina, tomo 14, 1860-1861.
Tese: “Breves considerações sobre a Medicina Legal aplicada ao casamento”.
– Antonio Salustiano do Nascimento Viana - Bahia – 1856.
Tese: “Como reconhecermos que o cadáver, que se nos apresenta, pertence a um indivíduo que morreu afogado?” – José Lourenço de Magalhães – Bahia – 1856.
Tese: “Como haver-se o médico nos relatórios e exames exigidos pelas leis civis e criminais para avaliar a integridade ou alteração de uma ou mais faculdades intelectuais?” - Rosendo Aprígio Guimarães – Bahia – 1859. Virgilio Climaco Damazio: “Considerações médico-jurídicas sobre o Art. 205 do Código Criminal Brasileiro” – Gaz. Méd. da Bahia, Vol. II, 1867-1868; “O ensino e o exercício da Medicina Legal em alguns países da Europa. Relatório apresentado à Faculdade de Medicina da Bahia. 1886”.
Tese: “Regime Sanitário” – Affonso José dos Santos – Bahia – 1881.
Raymundo Nina Rodrigues: “Antropologia Criminal. Estudos de craniometria. O crânio do salteador Lucas e o de um índio assassino.” – Gaz. Méd. da Bahia – 1890-1891; “Declaração de óbitos.” - Id. 1891-1892; “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Bahia. 1894”; “O crime do Uruguai (Relatório Médico-Legal). Gaz. Méd. da Ba – 1894-1895”; “Nègres criminels au Brésil” (Extrait del’Archivio de Psichiatria, Scienzi Penali ed Antropologia Criminale. Vol XVI Fasc. IV e V) - 1895; “Lesões pessoais; sua doutrina médico-legal na legislação criminal brasileira. Revista Médico-Legal da Bahia. Ano I, 1895-1896.”; “Um cas curieux d’hymen doublé avec défloration unilaterale. Id.Id.; “Consulta médico-legal. Suposto homicídio por queimaduras, seguido de condenação; erro judiciário provável. valor da perícia médico-legal.” Id.Id.; “Le dépeçage criminel au Brésil.” Id. Id. e Ano II, 1896-1897; “O caso médico-legal Custódio Serrão. Id. Ano II, 1896-1897”; “Lesões dos dentes.” Id. Id.; “Tentativa de envenenamento do Governador de Pernambuco”; Id. Id.; “Nulidade de testamento. Incapacidade mental em estado agônico.” Id. Id.; “Ilusões da catequese no Brasil. Revista Brasileira.” – 1896; “Memória Histórica da Faculdade de Medicina da Bahia” – Março de 1896; “Blessure de la moelle épiniere par un instrument piquant (Ann, d’hygiene pub. et de méd. leg.)” - 1897; “Des conditions psychologiques du dépeçage criminel”. Lyon, 1889; - “O problema médico-legal. Sua evolução no Brasil. Revista Brasileira, 1898; - “Epidemie de folie religieuse au Brésil. Ann. medico-psychol. de Paris, Mai – Juin, 1898; - “O regicida Marcelino Bispo. Bahia, 1899; - “Liberdade profissional em Medicina.” S. Paulo, 1899; - “Métissage, dégénérescence et crime. Lyon, 1899; -“Des formes de l’hymen et de leur rôle dans la rupture de cette membrane. (Extrait des Annales d’hygiene publique et de médecine légale)” - Paris, 1900; - “L’animisme fétichiste dês nègres de Bahia”. Bahia, 1900; “Manual da autópsia médico-legal”. - Bahia, 1901.
N ão será mencionada, na integra, a extensa bibliografia de Nina Rodrigues em razão do limitado tempo para a apresentação da presente conferência.
Cf. MH – Bahia – 1942; História Geral da Medicina Brasileira – Vols.I e II

Seguiremos apresentando tópicos sinópticos, assemelhados à cronologia dos casos em derredor do tema abordado.

1806 – Quinta feira, 20 de fevereiro, 10 horas da noite. Recolhia-se ao Hospital Real Militar da Bahia, o soldado Luis Manoel, da 7ª Comp.ª do Segundo Regimento de Linha, com “huma pequena ferida na baze do naris e outra na parede lateral direita do mesmo, ambas feitas com instrumento cortante, a qual tinha quaze duas pulgadas de comprido não interessado mais que os tegumentos, a sim como as sobre ditas”. Foi logo curado pelo Ajudante de Cirurgia do Segundo Regimento. No dia seguinte, foi o caso apresentado ao cirurgião-mor Dr. Jozé Soares de Castro. Na visita do dia 27, o sobredito cirurgião-mor diagnosticou “principio de hum tétano”. O ferido faleceu a 1º de março e “se procedeo o Corpo de delicto do cadaver”. “Procedeo-se a novo Corpo de delicto do cadaver” ...” depois de inumado. A segunda junta médica, que não participou do primeiro corpo de delito achou que “a causa da morte do ferido fosse hua simples offença que elles dizem observarão em hum dos ossos que forrão o nariz”, com o que discordou o Dr. Jozé Soares de Castro, ao afirmar “que poderia acontecer na ocazião que o cadaver foi sepultado pelo aperto da terra com a enxada...” – (notas sinópticas).
Cf. Antonio Carlos Nogueira Britto – A Medicina Baiana Nas Brumas Do Passado; APEB – Colonial e Provincial – Maço nº 435
1845 – Sábado, 31 de maio – O diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, Dr. João Francisco de Almeida, primeiro lente de Medicina Legal na história da nossa Faculdade, recebeu do lente de Anatomia, Dr. Jonathas Abbott, ofício comunicando que “muitíssima falta fazem no Amphitheatro Anatomico desta Faculdade cadaveres para a respectiva demonstração: a ponto de estarmos quase no meio do estudo de Myologia, e ainda não tivemos um só cadaver para nelle se verificar o que se pretende discorrer.
Ñão he, Excellentissimo Senhor, porque não morrem Doentes no Hospitral da Santa Casa, q.’ essa carência se faz tam sensível: pelo contrario, consta que quando o Guarda do Amphitheatro se dirige ao Deposito para dalli fazer conduzir o cadaver, q.’ alli jaz, Empregados do Hospital se oppoem, allegando que he prezo de Justiça, q.’ he irmão de alguma Confraria, ou que tem enterro, etc.”
Cf. F.M.B - Arquivo do Memorial – Acesso: 01.06.05 - 46; 01.06.05 - 47
Terça-feira, 24 de junho – O mordomo da mesa da Casa da Santa Misericórdia, João José Rocha Vianna, em ofício ao secretário da Faculdade, Dr. Prudencio José de Souza Britto Cotegipe, informa que “exceptuados os cadáveres de pessoas q.’ tem confraria, ou parentes... todos os mais são levados p.ª o Amphitheatro anatômico da Faculdade de Medicina; e quanto aos de prezos de justiça ..., esses são demorados no respectivo deposito até se faserem os necessários exames policiais, como é de estilo; ... “e para evitar o abuso”.. “mandei fechar a grade do deposito fronteiro ao Amphitheatro ... e entregar a chave ao Administrador.”
Cf. Ibidem
Quarta-feira, 25 de junho – O Dr. Malaquias Alvares dos Santos reenviou ao diretor da Faculdade de Medicina, Dr. João Francisco de Almeida, “a amostra de massa metallica, cujo exame me foi por V. S.ª determinado. Procedendo á analyze quantitativa d’aquella substancia, achei q.’ se compõe de: 0,91 de cobre em estado metallico, o,06 de ferro e alumina, e 0,02 de acido silicico; tendo de perda nas diversas operações 0,01.”
Cf. Ibidem

Segunda-feira, 27 de junho – Da sala das sessões do Júri, ofício firmado por José Joaquim dos Santos, Juiz Substituto, encaminhado ao diretor da Faculdade, Dr. João Francisco de Almeida, comunicando que “Em deferimento ao q.’ se requerera por parte de Luisa Anna Maria da Conceição, indicando V. S.ª , com aceitação do Dr. Promotor, p.ª dar seo parecer sobre os quesitos juntos pelo Procurador da mesma parte assignados, ...”
Cf. Ibidem

Eis os quesitos formulados em 27 de junho de 1845 pelo médico perito Dr. Malaquias Alvares dos Santos, respeitante ao sobredito processo: “1.º Si um envenenamento pelo acido arsênico, arsênio branco do Commercio, pode ser caracterisado, ou capitulado simplesmente pela observação dos seguintes symptomas: vômitos, febre, suores, ardencia na urina, e pulso pouco accessível?
2.º Si o individuo envenenado pelo acido arsenioso pode salvar-se sem socorro algum das Artes Medicas, depois de haver urinado sangue, sendo o veneno ingerido pela boca?
3.º Si a presença de u’a quantidade de u’a quantidade qualquer de acido arsenioso em um liquido de naturesa orgânica se demonstra pela inspecção do liquido, ou ainda pelo sabor, ou pelos vapores espalhados pelo sedimento
lançado sobre brasas, e pelo cheiro? Si por todas estas coisas conjuntamente, si por alg.ª isoladamente? ”
Infelizmente não foi possível localizar o restante do processo.
Cf. Ibidem

Sexta-feira, 6 de agosto – A Secretaria da Policia da Bahia, enviou ofício firmado por João Joaquim da Silva, ao diretor da Faculdade, reclamando “providencias acerca do inconveniente que encontra a Policia na confecção de Corpos de delictos visto se recusarem alguns Professores, parecendo justo q.’ Vossa Senhoria designe dous Facultativos em cada semana que pelo Administrador do Hospital serão convocados quando necessário for...”
Cf. Ibidem

Quarta-feira, 13 de agosto – Da mesma Secretaria da Polícia da Bahia é solicitado ao diretor da “Escola Medico-Cirurgica d’esta Província” “...huma relação dos instrumentos que se fazem necessários para os exames e corpos de
delicto, e autopsias de cadaveres á que se deve proceder, attentas as requiusiçoens das Authoridades Policiaes, por Facultativos em o Amphitheatro d’essa escola”.
Cf. Ibidem

O Dr. Jonathas Abbott recebeu ofício do diretor da Faculdade datado em 14 de agosto, com outro do desembargador Chefe da Polícia a respeito do sobredito assunto. Respondeu Dr.Abbott “que no Catálogo de Hector Bossange em Paris, publicado naquele ano, vinha debaixo do numero ~20692 o titulo de Caixa dos Instrumentos para Autopsias, cujo preço (sendo a mais completa) he de 200 francos: portanto um pedido p.ª aquella Capital, e com esta explicação será sufficiente para vir o que se quer, sem ser preciso individualizar os instrumentos.”
Cf. Ibidem

1846 – Quarta-feira, 28 de outubro – Naquela data, o subdelegado da freguesia do Pilar, Bernardino de Sena Moreira, oficiou ao diretor da “Eschola de Medicina”, Dr. João Francisco de Almeida, comunicando “que vão a prezença de V. S.ª oito pombos mortos, trez dos quaes abertos, q.’ se dis envenenados depropozito em caza de João Ignácio de Sampaio, do que se procedendo a corpo de delicto disserão os Médicos os Doutores José Theotonio Martins, e Januario Manoel da Silva não poderem emitir Juízo sobre a qualidade e natureza do mesmo pela deficiência dos reagentes chymicos q.’ só estes poderão descobrir a verdadeira cauza da morte dois ditos pombos; portanto V. S.ª haja de submeter este facto a esse processo, desejando saber do rezultado p.ª governo deste Juízo; vai egualmente a substancia alimentar de milho, e arroz q.’ os referidos pombos q.’ ainda a conservão nos intestinos, também envenenado.”
Cf. Ibidem

1849 – Segunda-feira, 9 de junho – O Chefe de Polícia interino, Antonio Augusto Pereira da Cunha, da província de Sergipe, remeteu ofício ao presidente da dita província, Dr. Zaccarias de Góes e Vasconcellos, exarado nos seguintes termos: “Fallecendo no dia 6 do corrente, o Escrivão d’Orfãos do Termo d’essa Cidade, Bartholoméo Jozé Corrêa Beija-flôr, suppôsto envenenado pela sua escrava Hilária, manda proceder pelos Médicos o Dr. Francisco Sabino Coelho Sampaio, e o Dr. Joaquim Jozé d’Oliveira a autopsia cadavérica, e praticada extrahissem parte do fígado, bofe, estomago, intestinos e cerebro, à fim de se remetterem hermeticamente fechadas em huma lata para qualquer laboratório chimico da Província da Bahia á serem competentemente analyzadas, visto n’essa Província não haver nem os reagentes e nem os laboratórios chimicos necessários p.ª o respectivo processo. Satisfazendo os ditos Médicos o que lhes tinha incumbido, extrahirão somente o estomago, o fígado, e a valvula, (*) por julgarem isso sufficiente para analyzar, e tudo fecharão hermeticamente em huma lata de fôlha, que por maior segurança mandei pôr dentro de huma caixa de madeira, que passo ás mãos de V. Ex.ª para pelo intermedio de V. Ex.ª ser remettida ao Ilustrissuimo Senhor Presidente da Província da Bahia, (**) á quem V. Ex.ª se dignará pedir que dê suas ordens, para que pelo laboratorio da escola de medicina ou outro qualquer se faça o exame no que vae dentro da referida lata, remettendo-se para aqui a narração do resultado do processo.”
Cf. Ibidem

Quarta-feira, 4 de julho - O presidente da província, Francisco Gonçalves Martins, remeteu para o diretor da Faculdade de Medicina da Bahia por cópia o ofício do chefe da polícia da província de Sergipe acerca do exame que se faz mister no estomago, fígado, e válvula que estavam hermeticamente fechados na lata que ao ofício acompanhava, afim de que mandasse proceder ao dito exame, e fosse informado com o resultado, para que pudesse satisfazer a requisição do presidente da província de Sergipe.
Cf. APEB – Colonial e Provincial – Maço nº 4046-1
Sábado, 25 de agosto – Comissão formada pelos Drs. Jonathas Abbott, Eduardo Ferreira França e Manoel (sic) (Francisco?) Rodrigues da Silva formularam o seguinte parecer: “Nós abaixo assignados tendo sido encarregados pelo director da Faculdade de Medicina em virtude da requisição do Excellentíssimo Senhor presidente da Província, de examinar as entranhas de um individuo, cuja morte suspeitou-se ter sido proveniente de propinação de alguma substancia venenosa assinão compromisso pela maneira que se segue.
Paragrafo 1.º - Aberto um caixão de madeira onde estavão encerradas as entranhas, encontramos dentro delle outro de lata sellado em cada angulo de sua face superior com o Sello Imperial; e procedido a abertura deste, achamos uma grande quantidade de liquido, que reconhecemos ser espírito de vinho, em cujo meio existião as sobreditas entranhas; e extrahidas ellas ellas vimos que erão o estomago; fígado; e o cego; que se achavão envolvidos em largas chapas de chumbo ordinário.
Parágrafo 2.º - Examinando cada uma destas vísceras achamos sua face exterior de cor cinzenta muito escura, sem offerecer lesão alguma podendo ser attribuida esta coloração ao longo contacto com o chumbo.
Abrimos o estomago, que estava unido ao esôfago com seus conductos ligados com cadarço branco, e encontramos no estomago, alem de uma grande porção de gases, uma pequena quantidade de um liquido expesso de côr rosacea que podíamos avaliar em meio a caixa; separamos cuidadozamente este liquido, o qual foi reservado para ser submettido á exame. Exploramos convenientemente a face interna das membranas, e notamos que o estomago appresentava uma cor avermelhada em quase todo toda sua extenção, e que esta cor comprehendia toda a expessura do tecido, sem alguma outra alteração, a não ser o amolecimento da mucosa. Examinando egualmente o cego, couza alguma nelle se encontrou. O figado, que era assaz volumoso, tinha alem da cor já mencionada, uma larga incisão na sua face convexa, tendo quatro polegadas pouco mais ou menos de extenção; tãobem nenhuma lesão nella havia.
Parágrafo 3.º - Dividirão-se estas visceras em duas partes, metade ficou conservada no mesmo liquido para um outro exame quando disso haja necessidade.
A outra porção, bem como o liquido extrahido do estomago forão separadamente submettidas á uma serie de operaçoens, afim de se descobrir alguma substancia mineral tóxica, principalmente o acido arsenioso, vulgarmente chamado rosalgar, e o sublimado corrosivo, ou solimão, como sendo venenos mais communs , e de q.’ ordinariamente lanção mão os malfeitores; e não obstante os processos mais regulares de q.’ tem feito uzo para cada um destes agentes tóxicos; e q.’ forão por nós empregados, e com especialidade na indagação do arsênico; não nos esquecendo do processo uzado pelo Sr. Orfila, ( *** ) no envenenamento do Duque de Praslin, nenhum indicio appresentou da existência destes venenos; somente obtivemos alguma quantidade de combinação de chumbo, derivado sem duvida a presença das laminas deste metal, com q.’ menos pensadamente se envolverão as vísceras.
Parágrafo 4.º - Do que fica exposto parece poder se concluir q.’ a cauza da morte seria talvez o effeito da inflamação do estomago, como se vê no paragrafo 2.º; e se foi motivada por outras cauzas, certamente não se pode observar q.’ o fosse pela acçção das substancias venenosas indicadas.
Parágrafo 5.º - Uma consideração ainda nos ocorre, e foi a falta de regularidade com q.’ se procedeo a authopsia, devendo-se ter examinado o estado exterior e interior das sobreditas visceras, para conhecer-se das lesões pathologicas. De mais foi grande erro encerrar as visceras em um vaso impróprio, e envolvel-as em corpos, como o chumbo, que além de sua acção sobre os tecidos, muitas vezes se appresentão em estado de impureza tal, que tornaria de nenhum valor qualquer resultado que se houvesse obtido do exame medico-legal que se havia procedido”.
Cf. APEB – Ibidem - Colonial e Provincial – Maço nº 4046-1
Terça-feira, 28 de agosto – O diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, Dr. João Francisco de Almeida, em ofício de 28 de agosto de 1849, enviou ao conselheiro presidente da província da Bahia o caixão que a correspondência acompanhava, contendo o resto das entranhas de Bartholomeo Joze Correa Beija-flor, falecido em Sergipe, suposto envenenado, que àquele diretor foram remetidos pelo presidente em ofício de 4 de julho próximo findo para serem examinadas naquela Faculdade em virtude das requisição do presidente da província de Sergipe, com o incluso relatório dos membros da mesma Faculdade por ele nomeados para proceder ao sobredito exame. O parecer foi remetido ao presidente da província de Sergipe em 29 de agosto de 1849.
Cf APEB – Ibidem - Colonial e Provincial – Maço nº 4046-1

Domingo, 16 de setembro – Os lentes da Faculdade de Medicina da Bahia, Drs. Francisco Rodrigues da Silva, Antonio Cerqueira Pinto e Antonio Mariano do Bonfim, firmaram o seguinte relatório: “Nós abaixo assignados, tendo recebido do Sr. Conselheiro Director da Faculdade de Medicina desta cidade um frasco incluído em uma lata, e contendo visceras humanas, p.ª conforme fôra requizitado pelo Excellentissimo Sr. Presidente da Provincia examinarmos se continha alg.ª substancia venenosa, procedemos ás investigaçõens que passamos á expor:
Era o referido frasco da capacidade de duas libras, tinha bocca larga e estava contido em uma lata de folha de flandres cylindrica e de vinte e quatro libras de capacidade, pouco mais ou menos. Esta lata estava interiormente forrada com aparas de papel e fragmentos de palha, e exteriormente envolta em papel branco – linhas d’agua no qual estava escripto o seguinte = S. P. = Ao Illustrissimo e Excellentissimo Sr. Dr. Manoel da Cunha Gabriel, do Dr. Presidente da Provincia - Para ser enviada a Faculdade de Medicina da Bahia – Do Chefe de Policia da mesma = Este involucro estava sobreposto á outro de papel almasso azul, em que tambem se lia o seguinte = Illustrissimo Senhor Dr. Chefe de Policia desta Provincia Ângelo Francisco Ramos – Aracajú – Do Juiz Municipal Supplente em exercicio da cidade de Estancia =
Sobre ambos os involucros se achava passado um atilho de nastro disposto em cruz e preso á elles por diversos pingos de lacre vermelho, sem sello algum.
estavam aquellas visceras conservadas em álcool, e constavam de um pedaço de fígado algum tanto rijo e de cor avingada, e mais um estomago, cujas membranas eram de consistencia couracea, e cujas aberturas estavam ambas ligadas por pedaços de cordão ordinario.
O Estomago continha um liquido amarellado q.’ foi separadamente analyzado.
Primeiramente carbonisamos parte de ambas aquellas vísceras, segundo o processo de Flaudrée e Danger, com o fim de verificarmos, se nellas existia arsenico: e depois de convenientemente tractar o residuo da carbonisação, e submrettido aos reagentes appropriados, e ao aparelho de Marsh, (****) não demonstrou a prezença daquelle veneno. Depois disto submettemos outras partes das mesmas visceras aos processos acconselhados por Galtier em busca de outras substancias venenosas mais communs; e obtivemos ainda resultados inteiramente negativos.
Da analyze do liquido contido no estomago, e executada conforme os preceitos prescriptos pelo mesmo Galtier chegamos aos mesmos resultados.
Deixamos então de continuar as outras tentativas, que só ao acaso poderiam ser dirigidas; visto como o relatório da autopsia cadavérica não veio aacompanhado das averiguações policiaes, e mais commentarios sobre o caso, como é sempre de rigorosa necessidade, para quem os peritos se possam guiar no desempenho de analyzes tão difficeis quanto trabalhosas.
Entrett.º, não tendo nós encontrado naquellas visceras os venenos mais communs, julgamos provável q.’ não tenha havido envenenamento.
Em fé de que fizemos o presente relatorio”.
Cf. APEB – Ibidem - Colonial e Provincial – Maço nº 4046-1

NOTAS

(*) Válvula de Bauhin, ou válvula ileocecal, ou barreira dos boticários, tem a forma de uma fenda (orifício ileocecal), cujos dois lábios ou valvas (superior e inferior) sobressaem na cavidade cecal.
A válvula de Bauhin está constituída pela invaginação do íleo (excetuando as fibras musculares longitudinais) no ceco.
Do ponto de vista funcional, a válvula cecal permite a livre passagem das matérias sólidas, líquidas e gasosas desde o intestino delgado grosso. Por outra parte se opõe imperfeitamente ao retorno dessas mesmas matérias desde o intestino grosso ao delgado, e os gases e líquidos em particular podem franquear a válvula bastante facilmente, a condição, sem embargo, de ser injetados suavemente e com pressão moderada. A esta propriedade se deve que seja possível praticar a lavagem total do tubo digestivo pelo reto. (Dauriac e Lesage, 1893).

(**) Francisco Gonçalves Martins, ao depois Barão e Visconde de São Lourenço.

(***) Mateo José Buenaventura Orfila, (1787-1853) – médico legista francês, diretor da Faculdade de Medicina de Paris. De origem espanhola, nascido em Mahón, Menorca, em 1787, estudou química em Paris com Fourcroy e Vauquelin. Após receber seu diploma de doutor em medicina em 27 de dezembro de 1811, abre um curso público de química; os casos de envenenamentos são freqüentes e Orfila cria uma nova ciência, a Toxicologia e publica o “Traité des poisons tirés des régnes minéral, végétal et animal ou toxicologie générale”, que lhe abre as portas à Academia de Ciências. Em 1819 é nomeado professor de Medicina Legal na Faculdade de Medicina de Paris e, em 1820, é nomeado presidente dos tribunais médicos. É nomeado professor de Química Médica e, no mesmo ano, a editora Béchet publica suas “Leçons de médicine légale” e, no ano seguinte, “Traité dês exhumations juridiques”.É nomeado Diretor da Faculdade de Medicina de Paris em 1º de maio de 1831, permanecendo no cargo até 28 de fevereiro de 1848.
“L’affaire Lafarge: Le Doyen Orfila qui occupa la chaire de médecine et de chimie pendant vingt trois ans á Paris, était aussi um grand expert en toxicologie, ce qui lui valait d1être souvent cité comme témoin dans lês procès d’empoisonnement. Dans la célèbre affaire Lafarge, Orfila declara avoir trouvé des quantités anormales d’arsenic dans le corps de Monsieur Lafarge, mari de l’accusée: constatation qui eut dû conduire tout droit Madame Lafarge à l’échafaud, si Raspail, contre-expert n’avait jeté lê doute dans la conscience des juré en protestant: “de l’arsenic, Monsieur le Président, j’en trouverais jusque dans votre fauteuil...”
Le tribunal ébranté, n'osa plus prononcer la peine de mort, mais la réclusion à vie.
Madame Lafarge fut graciée em 1852; jusq’à son dernier jour elle ne cessa de clamer son innocence.”

Cf. Jean-Yves Gourdol – Portraits de Médecins: http://perso.club-internet.fr/jgourdol/Medecins/Medecins Textes/orfila.html
Jean Moline – Perfiles - (Université François Rabelais, Tours, France): http://www.um.es/tonosdigital/znum2/perfiles/PerfilOrfila Tonos2.htm

(****) Marsh . “Chimiste anglais de la première moitié du XIXe siècle.”
“Appareil de Marsh. Appareil employé dans les recherches médico-légales relatives aux empoisonnements. Il est fondé sur la proprieté dont jouit l’hydrogène, à l’état naissant, de former avec l’ arsenic de l’hydrogène arsénié susceptible de se décomposer par la chaleur, et de donner pour produit de la l’arsenic métallique ou de l’acide arsénieux suivant les circunstances dans lesquelles ou opère. Il se compose d’um flacon à tube de sûreté pour lê dégagement l’hydrogene, qui passe dans un tube, se lave et se sèche dans une boule et un autre tube. On chauffe. Si lê gaz contient beaucoup d’hydrogènene arsénié, il se forme un anneau d’arsenic métallique. Si cet anneau ne se forme pas, on enflamme le gaz au bout du tube; et la flamme, reçue contre une plaque de porcelaine, donne un anneau arsenical, quand les matières mises dans le flacon à dégagement de l’hydrogène contiennent de l’arsenic.”
Cf. Dictionnaire de Médicine, de Chirurgie, de Pharmacie de l’Art Vétérinaire e des Sciences qui s’y rapportent - E. Littré – Dix-Septième Édition – Paris – Librairie J. – B. Baillière et Fils – 1893 – Do acervo particular do Autor. Tomo outrora de propriedade do Dr. Caio Moura, notável cirurgião baiano, em 1896.

Fontes primárias – documentos manuscritos originais e inéditos

APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia – Guia do Império – Série Instrução – Ensino Superior – Seção de Arquivo Colonial e Provincial – Caixa nº 1640 – Maço nº 4046-1 – Faculdade de Medicina da Bahia – (1832-1849).
Ibidem – Guia da Colônia – Repartições e Autoridades Militares - Maço nº 435 – “Hospital Real Militar” – Originais – (1805-1818)

F.M.B. - Faculdade de Medicina da Bahia – Arquivo e Biblioteca do Memorial da Medicina Brasileira – Acesso: 01.06.05.46; 01.06.05.47

FONTES SECUNDÁRIAS – DOCUMENTOS IMPRESSOS

Biblioteca Pública do Estado da Bahia – Seção de Periódicos

MH – Bahia - 1942 - Memória Histórica da Faculdade de Medicina da Bahia concernente ao ano de 1942 –Eduardo de Sá Oliveira – Universidade Federal da Bahia – Salvador – Centro Editorial e Didático da UFBA – Bahia – 1992

História Geral da Medicina Brasileira – Lycurgo Santos Filho – Vols I e II -HUCITEC – EDUSP – São Paulo – 1991

A Medicina Baiana nas Brumas do Passado – Antonio Carlos Nogueira Britto – Arquivos do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins -
Séculos XIX e XX – Aspectos Inéditos – Contexto e Arte Editorial – Bahia - 2002

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