HISTÓRIA DA MEDICINA artigo 20
O dia em que o moço Estácio de Lima chegou à Bahia para estudar Medicina (*)
Antonio Carlos Nogueira Britto
Vice-presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins, fundado em 29 de novembro de 1946
Quinta-feira, amanhecer do dia 3 de fevereiro de 1916.
Estava demandando à barra da Baía de Todos os Santos, em mar glauco, o provecto e afadigado vapor nacional “Bahia”, do “Lloyd Brazileiro”, procedente de Manaus, “com escala por Pará, Maranhão, Ceará, Natal, Cabedello, Pernambuco e Maceió”.
O experimentado “lupus maritimus”, que timonava o paquete, deu uma ordem para a máquina e o ofego dos êmbolos tornou-se menor e o ruído dos motores amorteceu. A fragrância que exalava do hálito do mar, impregnava todo o navio.
A madrugada dealbara de uma pureza acrisolada e uma claridade de encantadora formosura alumiava o céu azul-ferrete, sem nuvens para embuça-lo, doirando toda a paisagem da entrada da barra, dissipando as brumas matinais e desnudando as formas da elegante e mimosa cidade da Bahia.
O vapor-escape do paquete silvou longamente e, mais tarde, o bater de hélice cessou e um grosso calabre foi atado ao molhe. Uma aragem fria, da balsâmica viração da manhã, cortou e perpassou a face dos viajores, que anelavam pelo momento de saltar em terra, porquanto alguns, fracos e descorados, esverdinhados do rosto, padeciam de estuação pelo marulho.
Os viageiros, errando pela tolda, de lés a lés, num bulício de gente, abraçavam-se, apertavam-se as mãos e beijos chilreados de despedida eram trocados.
A sereia de bordo berrou e, no portaló, foi arriada a ponte passadiça pelos mareantes.
A amarragem do paquete “Bahia” foi feita sem tardança, pois naquela manhã, gloriosa e consoladora, não havia outros navios vindos do Sul do Norte, atopetados de gente a ser posta em terra. Apenas algumas sumacas e alvarengas faziam companhia ao velho “Bahia”, que iria levantar ferro, depois da demora necessária, para Vitória e Rio de Janeiro, tão logo recebesse carga e passageiros de 1ª, 2ª e 3ª classes.
Os viajantes desceram a escada do portaló e formaram uma fila, algaraviada, de prendadas senhoras e senhorinhas, com caixas de chapéus e de homens e rapazitos, com malas nas mãos, notando-se alguns cavalheiros, elegantes no trajar, verdadeiros “dandies”, empunhando badines.
Saltaram em terra 63 passageiros, incluindo 20 militares de um contingente do exército, além de 4 infantes.
Do Pará desembarcaram 31 viajantes; 14 do Maranhão; 6 de Pernambuco e 12 das Alagoas.
Em fila, os passageiros se encaminharam em direção ao “Commisariado de Policia do Porto” e foram atendidos por pachorrento amanuense que, dispersivo, assuntava as passagens e mais papéis.
Sobre uma escrivaninha, de Gonçalo Alves, jazia, aberto, alentado livro assaz ponderoso, contendo 200 folhas numeradas, rubricadas pelo escrivão Alfredo Theotonio Leão Velloso, que escreveu o termo de abertura e, com a data de 24 de abril de 1914, é assinado pelo delegado César Gambetta Moreira Spinola e servia para o registo dos passageiros entrados no porto da cidade da Bahia.
Chamado pelo amanuense, à sua frente, carregando as roupas emaladas, postava–se um pulcro e galhardo mancebo, de média estatura, airosamente aprumado, de enérgico ânimo juvenil, esbelto de corpo, vigoroso e dotado de maneiras resolutas e fidalgas, irradiando a graça de máscula juventude.
Sua harmoniosa cabeça apolínea era coifada por sedoso cabelame castanho claro. Fronte serena, olhos pardos e cismadores, animados por vivo olhar, penetrante e franco. Nariz plasticamente proporcionado e estético. Lábios finos e bem delineados, onde se debuxava a sombra de um buçozinho. Dos seus lábios, tinha-se a impressão de que nunca se apagaria o fulgor de tênue sorriso.
O amanuense molhou a pena e começou a escrevinhar na página 125-v: “ESTACIO VALENTE LIMA” e assinalou a coluna correspondente à nacionalidade: “brazileira” e marcou no espaço referente à procedência: “Maceió”. Ao depois, pousou um pedaço de papel mata-borrão sobre as anotações.
Omitiu o funcionário escrevente, como, de resto, o fizera com o assentamento dos demais passageiros, a averbação, nas colunas respectivas do grande e volumoso livro, dos dados referentes à idade, estado civil e profissão.
Findo o seu registo de entrada, o rapazo Estácio Luiz Valente de Lima, natural da atual cidade de Marechal Deodoro, antiga Alagoas, outrora capital do estado homônimo, nascido a 11 de junho de 1897, filho do desembargador Luiz Monteiro de Amorim Lima e da virtuosa senhora D. Maria de Jesus Valente de Lima, começou, na pujança dos seus 18 anos, a despedir-se dos companheiros de viagem, vindos de Maceió. Comovido, abraçou “Serzedello Corrêa, José Aranha Falcão, José Peixoto, José de Oliveira Lima, José Lopes Ferr.ª Lima, Maria Menezes, Maria Lopes Menezes, Carolina Menezes, José Magadon, Nicolau Ambrósio e Antonilla Izabel de Sá”.
Os ganhadores, que se amesendavam nos bancos, bocejando o seu ócio, já se achavam azafamados com as malas dos viajantes. Logo o cais descoalhou-se de parênteses de gente que o pejava, os últimos fulgores e rumores abafaram-se, os autos rolaram e deixaram o seu paradoiro e as redondezas, as coloniais casarias, as praças, as ruas, ruelas e ladeiras corcovadas assumiram um aspecto morrinhento.
Apenas seis anos após a chegada a esta capital, daquele moço das Alagoas, a Bahia médica quedou-se fascinada, quando o doutorando Estácio de Lima, perante a Faculdade de Medicina da Bahia, no Terreiro de Jesus, defendeu primorosa tese para obter o grau de Doutor em Ciências Médico-Cirúrgicas, da Cadeira de Patologia Geral, a 29 de outubro de 1921, e que versava sobre “Introdução ao Estudo da Agonia”, aprovada com distinção.
Calou fundo no âmago do meu espírito ao perlustrar, já em 1959, e recentemente, a notável obra. São belos os seus enunciados. – Sobre a velhice: “( ... ) À invernia da alma, corresponde, sempre, a névoa da cabeça.” Sobre a morte: “( ... ) O fraco, o imbelle, o imbecil, no transe mais sério da vida, sem encontrar resistência, acobarda-se; o forte, digno dos dias que viveu, olhando bem de perto a cessação do tudo, reage dignamente, suffoca os gritos instinctivos da alma e se entrega aos braços da morte, vencido porem não convencido, nem amedrontado.”
E sobre a agonia: “( ... ) Tão triste quanto a morte, tão remota quanto a vida, é a história da agonia. Triste, porque o agonizante vae morrer e remota porque a vida e a morte se confundem na história, como são inseparáveis na biologia.”
Segunda-feira, 9 de março de 1959, às 16 horas e 15 minutos. Dia da minha primeira aula de Medicina Legal. Dia em que conheci, mais de perto, o afamado lente Estácio de Lima. Encantou-me sobremodo a sua aula, a 29 de abril de 1959, em derredor do tema “Tanatologia Forense”. Comoveu-me, ademais, a homenagem prestada, a 16 de março do dito ano, no suntuoso anfiteatro Alfredo Britto, ao catedrático Evaldo Altino, professor pernambucano de Medicina Legal, falecido repentinamente em Recife. Consoante o mestre Estácio, “sua morte representa considerável perda para a ciência brasileira, pois Evaldo era um mestre de alta competência, dignidade admirável e dedicação ao ensino.”
A minha escabreação, deveras acentuada, impediu-me de acompanhar, mais próximo, o augusto mestre. Não importa. Conheci-o e admirei-o, como, de resto, toda a turma, além dos seis doutorandos repetentes, mercê dos rigores do ensino da disciplina.
Descobri que no seu excelso coração pulsavam, sempre, fibras valentes: as do afeto, as da honra, as da imortalidade. Foi um grande espírito e um grande caráter, inteligente e ativo, de uma bondade sem limites e de uma afabilidade imperturbável.
NOTAS
(*) Para homenagear a memória do imortal mestre Estácio de Lima, no azo do aniversário do seu nascimento, a 11 de junho de 1897, está sendo divulgado este trabalho de pesquisa, em derredor de ligeiras facetas da sua vida, por meio do prestigioso “e-fameb”, boletim informativo da Faculdade de Medicina da Bahia, no Terreiro de Jesus, da Universidade Federal da Bahia – Ufba.
A mesma matéria foi originalmente publicada em 11 de junho de 1997, no livro “Depoimentos – Um Século de Estácio de Lima” – DBC Artes Gráficas – Salvador, Bahia – 1997 – pp. 21-23.
A sobredita obra foi organizada pela Profa. Dra. Maria Theresa de Medeiros Pacheco e contém coletânea de depoimentos de assistentes, ex-alunos, amigos e admiradores do Professor Estácio.
Esta matéria pode também ser encontrada em Britto, Antonio Carlos Nogueira –“A Medicina Baiana nas Brumas do Passado – Arquivos do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins – Séculos XIX e XX – Aspectos Inéditos - Contexto e Arte Editorial; Governo da Bahia – Secretaria da Cultura e Turismo – 2002 – pp. 339-342
Fonte Manuscrita Original
Arquivo Público do Estado da Bahia – Seção de Arquivo Republicano –
“Commisariado de Policia do Porto – Registro de Entrada de Passageiros” – Volume nº 14 (26/04/1914 a 25/11/1916). Páginas 125-125-v.
Biblioteca da Faculdade de Medicina da Bahia – Memorial da Medicina Brasileira – Cadernetas relativas às disciplinas do 5º ano médico – 1959.
Fonte Impressa
Tese apresentada e sustentada perante a Faculdade de Medicina da Bahia por Estácio Luiz Valente de Lima, no dia 29 de outubro de 1921, “afim de obter o grau de doutor em Sciências Médico-Cirúrgicas”.
Dissertação: “Introdução ao Estudo da Agonia” – (Trabalho do Laboratório do Hospital do Isolamento – Mont Serrat) – Cadeira de Pathologia Geral.
Bahia – Imprensa Official do Estado – Rua da Misericordia nº 1- 1921 – pp. 7 e 144.
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