HISTÓRIA DA MEDICINA artigo 25
TERIA SIDO CRIMINOSO O INCÊNDIO DA FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA EM 1905? (*)
Pesquisa historiográfica inédita, revista e ampliada
Dr. Antonio Carlos Nogueira Britto
Início da noite de quinta-feira, 2 de março de 1905, que antecedia o carnaval da cidade da Bahia.

O lendário largo do Terreiro estava atopetado de gente e as ruas das Portas do Carmo se encontravam ornamentadas com flores, florões, galardetes, sanefas e guirlandas de papéis coloridos.

Ludâmbulos chalreavam e foliadores, lançando serpentinas “Lien d’Amour”, garganteavam modinhas, faziam momices e bebiam, nos coloniais sobrados, “Champagne Stumpe e Studer”, enquanto aguardavam a ansiada passeata do clube Cruz Vermelha, um dos mais “raffinée” da cidade da Bahia, que se anunciara fulgurante com o belíssimo efeito de seus carros alegóricos.

Tropel de populares pejava as estreitas e ladeirentas ruas do distrito da Sé, patrulhadas pela polícia de giro, fiscalizada por oficiais do regimento policial, a cavalo.

Inebriados pela afamada cerveja “Brazil”, fabricada na Bahia, carnavalescos macheavam gráceis donzelas, enquanto mancebos, deitando bafo de aguardente, cabriolavam em companhia das “cocottes”.

Entrementes, por volta das 20 horas e 30 minutos, um popular, José Ignacio da Silva Amorim, que se achava assentado ao lado do portão de ferro, em frente ao pavilhão da biblioteca da Faculdade de Medicina da Bahia, notou o escapamento de fumaça através de uma janela do dito cômodo, sucesso que o fez correr e espalhar a notícia do início de incêndio na Faculdade de Medicina, seguido imediatamente pelo Sr. Archimedes Pessoa, estudante de humanidades e preparatoriano, morador na circunvizinhança, que avisou às autoridades e acadêmicos sobre o princípio de incêndio, que se alastrou célere, com a fúria das grandes catástrofes, as chamas estorcendo-se com estalidos e as faúlhas turbilhoando, dantescas, devorando, lá para os fundos, pavilhões do majestoso palacete da Faculdade de Medicina e Farmácia da Bahia.

Destarte, ao dealbar do ano letivo, irrompeu violento incêndio na antiga sede do Hospital de Caridade, transformada, após a remoção dos enfermos para o nosocômio de Nazareth, o Hospital Santa Isabel, da Casa da Santa Misericórdia, em laboratório de Anatomia,e Fisiologia Patológicas, Medicina Legal e Química Médica, e Biblioteca, inteiramente destruídos, bem como a antiga capela dos Jesuítas e laboratórios de Bacteriologia, Histologia e Historia Natural, grandemente danificados.

Sexta-feira, 3 de março.
Às 11 horas, os peritos, Drs. Silva Lima e Theodoro Sampaio, realizaram o exame de “corpo de delicto” do edifício da Faculdade de Medicina, sob a presidência do Dr. Madureira de Pinho, assistido pelo diretor da Faculdade, Dr. Alfredo Britto.

Sábado, 4 de março.
O competente inquérito policial foi conduzido pelo Dr. Cassiano Amaro Lopes, comissário da 1ª circunscrição, em uma das salas da Faculdade, a sala Abbott, cedida pelo diretor, procedendo-se as diligências, sendo ouvidos em auto de pergunta: Maria Francisca da Conceição, “mulher do povo”, que declarou ter presenciado a ocasião em que se dera o incêndio; Marciano Bonifácio Leite, (*) encarregado do almoxarifado e Marinho Moreira Sergio, porteiro da Faculdade, depondo, como testemunha, José Ignacio da Silva Amorim, morador em prédio nas Portas do Carmo e que foi quem primeiro denunciou o ocorrido ao posto policial da Sé.

Segunda-feira de carnaval, 6 de março.
Foram ouvidos o professor Lopes Rodrigues, bedéis Olavo Marques e Carlos Silva, o eletricista e seu ajudante.

Quarta-feira, 8 de março.
Prosseguiu o inquérito policial, presidido pelo Dr. Cassiano Lopes, assistindo as diligências o Dr. Alberto Teixeira, substituto do procurador da República.
Foram interrogados Carlos Silva, amanuense da Faculdade e Antonio Francisco da Silva, encarregado das obras de carpina.

Sábado, 11 de março.
Continuou o inquérito na sala Abbott, dirigido pelo Dr. Cassiano Lopes, com a assistência dos Drs. Oscar Vianna e Alberto Teixeira, procurador substituto do procurador da República neste Estado.

Declarações filtradas em derredor do inquérito policial, permitiram o levantamento dos dados que se seguem: as pessoas que acudiram de imediato ao local do sinistro afirmaram que o incêndio começou no almoxarifado, alastrando-se rapidamente para o resto do imponente prédio. Outras asseveraram que as chamas se manifestaram simultaneamente em dois locais distantes do grande pavilhão, podendo, por conseguinte, o incêndio ser fruto de maquinação perversa e criminosa.

O Dr. Alfredo Britto interrogou o velho empregado do almoxarifado, Marciano Bonifácio Leite, tendo o mesmo declarado que, antes de retirar-se, no dia 2 de março, do prédio da Faculdade, encontrava-se no almoxarifado, de onde saiu por volta das 2 horas da tarde, sem perceber qualquer anormalidade. Afirmou, ainda, que no almoxarifado não havia aparas de madeira, nem palhas de encaixotamento. Fechou todas as portas e janelas ao sair e “garantiu mais achar impossível que, do lado de fora e sem arrombamento, alguém pudesse lançar fogo para dentro do almoxarifado”. “Perguntado se era verdade que elle havia sido roubado no dia do incêndio em quantia superior a 500$000, respondeu elle que o incendio do almoxarifado o tinha feito perder quinhentos e tantos mil reis, que deixara guardados numa das gavetas de um movel alli existente, mas que propriamente não tinha sido roubado naquella quantia, que pertencia à Sociedade Medica, à Gazeta Medica e mais a alguns particulares”.

Era público e notório que o funcionário Marciano Bonifácio Leite já havia, em certa ocasião, sido roubado em cerca de 2.000$000, que guardava consigo, pelo fato de cobrar as mensalidades dos sócios de diversas associações científicas, que nele depositavam o mais amplo crédito.

Tais fatos levaram a imprensa a suspeitar de que o incêndio não foi casual, porquanto perguntava-se: “o ladrão que uma vez furtou os 2 contos de reis, sob a guarda do Sr. Marciano Leite, teria agora de novo furtado os quinhentos mil reis... e lançado fogo no almoxarifado com o intuito de fazer desapparecer os vestigios de acção criminosa?”

Diante do Dr. Alfredo Britto, os Srs. Olavo Marques, empregado daquele estabelecimento e o renomado pintor Lopes Rodrigues declararam que ao chegarem ao edifício da Faculdade, logo no início do sinistro, encontraram aberta uma porta da frente do prédio, e que havia indícios de ter sido aberta à força de dentro para fora, por algum indivíduo que, deixando-se ficar no interior do edifício, teria deitado fogo ao almoxarifado e fugindo forçando a dita porta.

O exame realizado na referida porta, que se encontrava descerrada, revelou que ela foi aberta de fora para dentro e não de dentro para fora, como a princípio se julgava. Ademais a dita porta tinha uma fechadura assaz quebradiça, capaz de não resistir a um vigoroso empuxão. Além disso, de todas as portas da frente da Faculdade, a peça violada era a única que dava acesso fácil e direto até o almoxarifado, local onde teve início o incêndio, deduzindo-se que o criminoso, perfeitamente cônscio do seu plano, escolheu aquela passagem para levar a efeito a sua maquinação.

As autoridades foram informadas que, dias antes do incêndio, armazenaram no almoxarifado da Faculdade duas pipas de álcool para os trabalhos dos laboratórios e enfermarias, o que poderia justificar a celeridade e ímpeto com que o fogo se alastrou, acreditando-se que o álcool foi dolosamente derramado dos barris para facilitar a combustão do cômodo, porquanto se o combustível não tivesse sido extravasado das pipas, logo que o fogo as atingisse, verificar-se-ia uma forte detonação, fato que não aconteceu, consoante o depoimento das testemunhas residentes nas imediações da Faculdade.

Vale salientar que em entrevista a prestigioso periódico “fluminense”, o Dr. Alfredo Britto tornou público a sua convicção de ter sido proposital o sinistro.

O trágico acontecimento, que tanto afligiu a intelectualidade e sociedade baianas, ficou em evidência na imprensa desde o dia 3 de março até os vinte dias subseqüentes. Inexplicavelmente, um pesado reposteiro é cerrado em torno do momentoso “affaire”, mormente no que diz respeito às conclusões das investigações e do inquérito policial.

O misterioso “gap” foi desfeito nos últimos dias de agosto de 1905, quando o ministro do Interior recomendou ao diretor da Faculdade de Medicina da Bahia que ficasse atento ao resultado das apurações, ao tempo em que solicitava comunicar àquele ministério a conclusão das mesmas. Imediatamente, visando atender “as constantes solicitações do ministério do Interior ao diretor da Faculdade de Medicina”, o chefe da Segurança Pública exigiu do Dr. Cassiano Lopes que lhe informasse o resultado das investigações e inquérito sobre o incêndio.

Desde então, nada mais foi divulgado em derredor da sindicância, que foi por nós rastreada, exaustivamente, porém não completamente, até o ano de 1910, sem êxito.

Recorremos aos arquivos do Memorial da Medicina, na vetusta Faculdade, e, infelizmente, nenhum documento foi encontrado respeitante ao assunto.

Inexplicavelmente, as atas da Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia, por nós perlustradas, não registram qualquer referência às investigações, inquérito policial e conclusão dos trabalhos, desde a primeira reunião da Congregação, após o incêndio, aos 22 dias de março de 1905, até a reunião de 11 de novembro de 1907, quando decidimos interromper as pesquisas naqueles preciosos e raros livros.

Da mesma forma, mergulhamos, sem sucesso, no extraordinário e valioso acervo documental do Arquivo Público do Estado da Bahia, nos detendo na Seção Judiciária e Seção do Arquivo Republicano – Guia dos Documentos da Secretaria de Segurança Pública, além de esmiuçar os documentos da Relação dos autos-crime. Tentaremos o Arquivo Nacional.

Curiosamente, no “Summario das decisões da Congregação em 1905”, publicado na Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia – Ano IV – Tomo 4º - 1906 - referente ao ano de 1905, (Acervo da biblioteca particular do Autor), lê-se às páginas 245-246v: “Mão sacrilega porém, num impulso de perversidade inaudita, que tal é a convicção arraigada no espírito de quantos acompanharam reflectidamente os inqueritos exaustivos que se effeituaram logo, por parte da Justiça Federal e da Directoria da Faculdade, mão perversa e criminosa, que infelizmente se não poude apanhar, não duvidou, num momento de allucinação, levar o facho incendiario ao templo sagrado da Sciencia, sepultando nos escombros de pavoroso incendio immenso cabedal de trabalho e esforços, paciente e dedicadamente accumulado no longo transcurso de dezenas de annos.”

Esta é, portanto, uma modesta, incipiente e preliminar comunicação que tem como escopo despertar o interesse da geração de médicos, herdeira do glorioso santuário da medicina brasileira, no Terreiro de Jesus, além de, deliberadamente, provocar os provectos e notáveis pesquisadores da história da medicina baiana, que por ventura conheçam as conclusões do inquérito em tela, a fim de que possam elucidar o interessante assunto.

(*) – Marciano Bonifácio Leite – “Era ultimamente o Sr. Marciano Leite um dos mais antigos funcionários desta Faculdade.
Em 1869 exerceu elle interinamente, por tres mezes (Julho a Outubro), durante a licença do effectivo, o lugar de Conservador do gabinete de chimica, o qual tornou a occupar, tambem interinamente, por pouco tempo, em Abril de 1874.
Foi nomeado Conservador effectivo do gabinete de chimica organica em 14 de Agosto de 1886.
Com a sua morte perdeu tambem esta Escola um dos seus melhores serventuarios, sempre assiduo, solicito e exacto no cumprimento dos deveres, gosando, pelo seu caracter e correcto proceder, da estima e respeito de todos.
Falleceu a 30 de Setembro de 1924.”
Cf. “Memoria Historica da Faculdade de Medicina da Bahia relativa ao anno de 1924 – pelo Dr. Gonçalo Moniz Sodré de Aragão – Professor cathedratico de Pathologia Geral - Ministerio da Educação e Saúde – 1940 – p. 339.”
Do acervo da biblioteca particular do Autor.
FONTES
IMPRESSAS E MANUSCRITAS
1. Diário de Notícias – 3 de março de 1905.
2. Ibidem – 4 de março de 1905.
3. Ibidem – 6 de março de 1905.
4. Ibidem – 14 de março de 1905.
5. Ibidem, 15 de março de 1905.
6. Ibidem, 16 de março de 1905.
7. Ibidem, 06 de abril de 1905.
8. Ibidem, 23 de agosto de 1905.
9. Ibidem, 26 de fevereiro de 1906.
10. “A Bahia” – 1º de setembro de 1905.
11. Atas das Sessões da Congregação – Faculdade de Medicina da Bahia, no Terreiro de Jesus – UFBA - Arquivo e Biblioteca do Memorial.da Medicina Brasileira - – Ata de 22 de março de 1905.
12 Ibidem - 19 de julho de 1905
13 Ibidem – 7 de agosto de 1905.
14 Ibidem – 25 de agosto de 1905.
15 Ibidem – 11 de novembro de 1905.
16 Ibidem – 16 de novembro de 1905.
17 Ibidem – 22 de dezembro de 1905.
18 Ibidem – 2 de março de 1906.
19 Ibidem – 22 de março de 1906.
20 Ibidem – 28 de abril de 1906.
21 Ibidem – 7 de maio de 1906.
22 Ibidem – 8 de maio de 1906.
23 Ibidem – 20 de junho de 1906.
24 Ibidem – 18 de julho de 1906.
25 Ibidem – 25 de julho de 1906.
26 Ibidem – 20 de setembro de 1906.
27 Ibidem – 1º de outubro de 1906.
28 Ibidem – 9 de outubro de 1906.
29 Ibidem – 16 de novembro de 1906.
30 Ibidem – 1º de março de 1907.
31 Ibidem – 19 de abril de 1907.
32 Ibidem – 22 de maio de 1907.
33 Ibidem – 11 de junho de 1907.
34 Ibidem – 22 de agosto de 1907.
35 Ibidem – 1º de outubro de 1907.
36 Ibidem – 11 de novembro de 1907.
37 Arquivo Público do Estado da Bahia – Seção de Documentos Administrativos – Seção de Arquivo Republicano – Guia dos Documentos da Secretaria de Segurança Pública.
38 Ibidem – Relação dos Autos – Crime.
LEGENDA DO RETRATO
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Quadro do Dr. Alfredo Britto, Diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, exposto na galeria de retratos de diretores da Escola, no edifício da Faculdade, ao Terreiro de Jesus.
Fonte: Faculdade de Medicina da Bahia, no Terreiro de Jesus - UFBA
(*) Cf. Britto, Antonio Carlos Nogueira – A Medicina Bahiana nas Brumas do Passado – (Arquivos do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins); – Governo da Bahia – Secretaria da Cultura e Turismo; – egba – Empresa Gráfica da Bahia; – Contexto e Arte Editorial – Avenida Adhemar de Barros – 162 – Ondina – Salvador – Bahia – Ano: 2002 – pp. 317-322.
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