HISTÓRIA DA MEDICINA artigo 42

POR DENTRO DO HOSPITAL MILITAR DA BAHIA NO ANO DE 1827

Dr. Antonio Carlos Nogueira Britto
Vice-presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins.
Fundado em 29 de novembro de 1946

ASPECTOS INÉDITOS DO DIA-A-DIA DOS ATENDIMENTOS DE URGÊNCIA E NOS PROCEDIMENTOS DA ADMINISTRAÇÃO NOSOCOMIAL.

ANTELÓQUIO

Manhã de segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

Era uma precordialgia súbita, pânica, lancinante, crudelíssima, que se irradiava para a mandíbula, seu corpo e seus dois ramos ascendentes, apófises coronóides e côndilos e alcançando as estruturas esqueléticas e fibrocartilaginosas e ósseas dos condutos auditivos externos. Afligia-me o iminente prenúncio de morte súbita pela dor formidanda, extremamente angustiante, que castigava a tábua do meu peito como se calcada e rasgada estivesse pelas patas ponderosas de colossal Leviatã.  

Aterrorizado pelo auto-diagnóstico, em via pública, dentro de meia hora encontrava-me defronte de minha casa de residência, no arrabalde da Barra, apeando-me de um velho e pachorrento carro de aluguel, tendo ao “guidon” um provecto “chauffeur” de praça. Minha filha, sem tardança, conduziu-me, no seu automóvel, até o setor de emergência do Hospital Português, abençoado “Asklepieion”.

Atendido com presteza, lhaneza e proficiência, sedou-me a dor, em poucos minutos, o láudano ministrado.

Senti-me, provavelmente pela ação do fármaco do láudano, obnubilado e sonolento, experimentando fenômenos de deslumbramento e de trevas, perturbação da consciência e dos sentidos, entregando-me a devaneios, fantasias, e quimeras, manifestações oníricas amortalhadas por funéreos crepes de névoas espessas e densas e, às vezes, cintilantes.

Encontrei-me, arrastando-me, lasso, em um sinistro, sombrio e profundo vale lacrimoso dos mortos. Escutava urros, infinitos ais, gemidos, brados de dor e de ira, pois a eles não lhes era permitido o descanso da morte.

Assediei a vista e o ouvido para a planície lacrimosa das dores e em direção à margem de um assombroso rio. As legiões de almas inquietas enchiam o ar de queixas e lamentos. Aos poucos, minha fraca visão descortinava o vulto de um velho, de brancas cãs, que remava, de olhos ígneos e fixos, e que bradava, ameaçando com o remo, as almas condenadas e gritando, roufenho, lugubremente, que elas jamais veriam o Céu. Era o infernal e sinistro barqueiro Caron, que, em seu barco, transportava as almas condenadas, de choro lastimoso, para dentro da região do Hades, através do rio Acheron e de uma bifurcação do cabo Acherusian, chamada Eregli, na atual Turquia e que foi avistada pelos Argonautas. Aumentavam na multidão de malditos que perambulavam as lamurias na infernal geena, condenados a padecer eternamente, após a morte, na morada de Hades, que reinava sobre os mortos, chamado de “o invisível”, pelo uso do elmo ou capacete de invisibilidade; era irmão de Zeus e de Poseidon, e supervisionava o julgamento e a punição dos sentenciados

Reuni minhas débeis forças para arrastar-me até o barco do velho condutor ao inferno. O hálito do sinistro e escuro rio era miasmático, nauseante, mefítico. Súbito, avistei, próximo à funérea embarcação, uma diáfana e etérea imagem, de nívea túnica, envolvida em luminoso halo, andando suavemente sobre as águas. Virou-se lentamente, fitando-me com seus olhos profundos, plenos de misericórdia e mansidão, ergueu-me com mãos fortes e firmes e sorriu para mim, como se há muito me conhecesse. Carregou-me amorosamente no colo, qual um tenro infante. Era Jesus de Nazaré, o Cristo ressuscitado.

Logo, entregou-me à guarda de um jovem, belo e atlético, que se movia com destreza, usando sandálias e capacete alados, empunhando um caduceu de ouro, também provido de asas, encimado por duas serpentes entrelaçadas em sentido inverso. Foi o inventor da lira e da flauta de Pã. Em virtude da sua rapidez, tornou-se o mensageiro dos deuses e uma das suas tarefas era conduzir os mortos às profundezas subterrâneas dos infernos. Tratava-se de Hermes.

Súbito, senti-me envolvido por um remoinho, em cujo núcleo fui colocado, amparado por Hermes. O movimento em círculo, causado pelo cruzamento de ventos fortes e tempestuosos contrários, aumentou vertiginosamente, assumindo as proporções de um vendaval e, com poderoso impulso, alçou vôo em derrota do imaculado e luminoso firmamento do Olimpo, em movimento de elipse muito alongada, deixando atrás de si uma cauda nebulosa e gasosa, como se fosse um carrossel de fogo, seguido de chuvas de estrelas.

Não sentia medo. Pelo contrario, dominava-me uma inquebrantável energia e animava-me uma firme coragem. No interior do turbilhão de ar, imperava o silêncio e a temperatura era assaz agradável. O diáfano ambiente, dominado pelo encantamento e fascínio, estava impregnado de cores cintilantes e variegadas.

Olho para a direita, e vejo, ao meu lado, uma personagem, que já conhecia: cabeça anatomicamente bem proporcionada e coroada por negra e anelada cabeleira; face harmoniosa engrinaldada por belas, escuras e longas barbas olímpicas, olhos firmes e negros, nariz quase adunco; o semblante refletia dignidade e sapiência; seu tórax era vigoroso; a sua zooantropomorfia dizia-me que se tratava do centauro Quíron, filho de Cronos e Filira, uma oceânida, o mais respeitado dos centauros, pela sua sabedoria, preceptor de Asclépio, Aquiles e Jasão. Até o deus Zeus foi educado por Quíron.

À minha frente, seguia Asclépio, nascido em Epidauro, no Peloponeso; viveu em torno de 1200 a C., deus da medicina e filho de Apolo com a ninfa mortal Corônis, filha do rei da Tessalia, Flégias. Segundo Ovídio e Hygino, o próprio Apolo matou Corônis, com a qual havia concebido Asclépio e assassinou Ísquis, amante da sua ninfa Corônis, mas, cheio de remorso, salvou a criança, abrindo o ventre materno e entregou o nascituro ao centauro Quíron para educá-lo, ensinando-lhe a arte de curar. Assim nasceu Asclépio pela operação cesariana, a mais antiga menção que se encontra desta intervenção, praticada, no caso em tela, “post mortem matris”. Ressuscitou mortos, como Hipólito, filho de Teseu, Licurgo, Glauco e Capaneu. Teve dois filhos, também médicos, Podalírio e Macaon, que participaram do cerco à cidade de Tróia. Posteriormente, nasceram quatro filhas: Aceso (a que cuida de), Iaso (a cura), Panacéia (a que socorre a todos) e Hígia (a saúde).

Observei que Asclépios viajava pelo espaço, empunhando o seu legítimo caduceu, um cajado onde enrolava-se uma única serpente, verdadeiro símbolo da atividade médica, que não deve ser confundido com o caduceu de Hermes.

Em comovente gesto de solidariedade, durante a incrível jornada pelo firmamento do Olimpo, abraçava-me, de um lado, o médico Hipócrates (c. 460-377a.C), “o pai da Medicina”, nascido na ilha de Kós, na Grécia; do outro lado, sentia o prazer do amplexo de Cláudio Galeno, médico dos gladiadores, nascido em Pérgamo, na Ásia Menor, no ano 130, na atual Turquia, por mim visitada, recentemente, com indizível emoção, em companhia do Dr. Lamartine de Andrade Lima, distinto e ilustrado colega e amigo fraterno; com sempiterna ternura na fisionomia, junto a Hipócrates e Galeno, estava o viajor e famoso médico, habitante do califado oriental, Abu Ali al-Husain ibn Abdallah ibn Sina, conhecido como Avicena, nascido em 980, em Afshena, próximo a Bukhara, na Pérsia. E, acariciando a minha cabeça, estalando as unhas, num autêntico e hipnótico “cafuné”, o Dr. Pedro Ribeiro d’Almeida Santos, meu amantíssimo e sapientíssimo bisavô-materno, nascido em Aldeia de Sant’Anna, atual Aratuípe, Bahia, graduado em medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia, ao Terreiro de Jesus, no ano de 1871 e 2º Cirurgião do Corpo de Saúde do Exército do Império do Brasil.

Em súbita guinada, profunda e radical, a resplandecente carruagem dos deuses do Olimpo, conduzida pelo sábio Quíron, mergulhou em derrota ao azul ferrete do mar Egeu. Passei pelo Helesponto, onde termina a Europa e começa a Ásia. Avistei as terras entre os Dardanelos, mar de Marmara e a baia de Eremit, chamadas nos velhos tempos de “Troas” ou “Troad”, sítios da Ásia Menor, que tem como um dos mais importantes a bela e imponente cidade de Tróia, do velho rei Príamo, ainda não sitiada, destruída e incendiada. Localizei o monte Ida, onde foi criado o jovem Páris. Mais em frente, passei por Asklepion, ao oeste de Pérgamo, ou Bérgama. - A Área Sagrada em Epidauros, na Grécia, foi trazida para Pérgamo no século IV a C. e, naquela centúria foi fundado um centro de saúde, outro Asklepieion. Enxerguei, comovido, a Via Tecta, (A Estrada Sagrada), A Fonte, O Mausoléu, o Propylon, a grande Biblioteca, - a única no interior de um Asklepieion, o Teatro, com capacidade para 3500 espectadores, as monumentais colunatas helenísticas, a Fonte, as Latrinas e o Asklepieion, o centro médico, onde havia, no pórtico principal, um dístico: “Não é permitido morrer.” Os doentes tinham acesso ao Asklepieion por uma longa e imponente entrada, com iluminação natural, chamada Cryptocorpus ( Passagem Sagrada). Freqüentaram o centro de saúde de Pérgamo médicos famosos como Calos, Antipas, Galeno, Nikomadez, Flavius e Heteider.

O silêncio era tão profundo, ao descortinar a incrível e luminosa paisagem da Ásia Menor, que escutei, nitidamente, os batimentos do meu coração, firmes, compassados, sem arritimias. Estava vivo.

A cristalina e cintilante abóbada celeste do Olimpo parecia deliciar-se ante a imprevista explosão de fantástica e divina sinfonia grega, executada com poucos instrumentos musicais como a lira, cítara e várias espécies de flautas, acompanhada das cantoras do Olimpo, compondo encantador coral de belas ninfas virgens, nuas, das florestas do monte Ida e das musas, as deusas que inspiraram a música.

De súbito, encontrava-me, repousando, hígido, no meu leito, envolto na suave paz estudiosa e conventual do grande Asklepieion do Hospital Português.

A desoras, levantei-me e fui até a janela do meu aposento. Alcei os olhos em direção ao céu, e emocionei-me ao ver a constelação zodiacal de Sagitário, mais cintilante do que nunca. Um astro de luminosidade matizada de cores vivíssimas, escarlates, descreveu uma elipse como se estivesse dirigindo para mim um longínquo sinal de despedida.

NOTA

Dois dias antes do agravamento do meu estado valetudinário, estava a ler, com avidez e sôfrego, “La Divina Commedia” de Dante Alighieri, illustrata da Gustavo Doré e dichiarata con note tratte dai migliori commenti per cura di Eugenio Camerini – Milano, Casa Editrice Sonzogno, Via Pasquirolo, 14”; por outro lado, lia, também, a Ilíada, de Homero e as obras respeitantes a Tróia, Pérgamo, Éfeso, Istambul, Capadócia, Pamukkale, Aphodisias e Hierápolis e concernentes às belas e vastas excursões às regiões da Turquia, sempre acompanhado pelo meu bom colega Dr. Lamartine Lima.

Provavelmente, devo ao láudano, creio, e às ditas literaturas e à excursão pela Ásia Menor, o devaneio e capricho da imaginação que povoaram o meu inconsciente de uma deliciosa manifestação onírica e quimérica durante o mais delicado período de minha vida.

 

A SEGUIR: POR DENTRO DO HOSPITAL MILITAR DA BAHIA NO ANO DE 1827
ASPECTOS INÉDITOS DO DIA A DIA DOS ATENDIMENTOS DE URGÊNCIA E NOS PROCEDIMENTOS DA ADIMINISTRAÇÃO NOSOCOMIAL - PARTE I

 

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