HISTÓRIA DA MEDICINA artigo 44

POR DENTRO DO HOSPITAL MILITAR DA BAHIA NO ANO DE 1827

Dr. Antonio Carlos Nogueira Britto
Vice-presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins.
Fundado em 29 de novembro de 1946

ASPECTOS INÉDITOS DO DIA-A-DIA DOS ATENDIMENTOS DE URGÊNCIA E NOS PROCEDIMENTOS DA ADMINISTRAÇÃO NOSOCOMIAL.

PARTE I I

A noite abafadiça e fornalha na quinzena primeira da quadra canicular do mês de fevereiro do ano de 1827 prenunciava dias de torreira do solama intenso e doentia mornidão na cidade da Bahia.

Na praça de Jesus, desde a vermelhidão do nascer do sol, nenhum vento para ramalhar as árvores do amplo teso; apenas pássaros acardumados chilreavam e, outros, maiores, soltavam melancólicos trilos e grasnavam, lúgubres; no amplo e variado casario da Praça do Terreiro de Jesus, a criação empoleirada nos quintalejos e quintalões cantarejava com estridulência. Um macrobo cavalo alazão, cor de canela, listrado, ornejava e escravas Haussás começaram a estender as roupas lavadas sobre as gramíneas rasteiras, cheirosas, do Terreiro de Jesus. De quando em vez, ais magoados dos militares enfermados, recolhidos no Hospital Militar da Bahia, eram percebidos.

De manhãzinha, alguns anspeçadas e soldados da polícia conduziam presos para a sub-delegacia da rua do Paço, por serem encontrados praticando atos imorais na rua, Manuel da Paixão e Maria Carolina, cabras, além de Joaquim Jozé da Trindade, crioulo, alfaiate, por crime de defloramento e Balthazar, africano, escravo, por ofensas físicas.

Mais tarde, o sol rebrilhou, na sua plenitude, dardejante, reverberando e revelando a gravidade clerical e grandiosidade arquitetônica do velho casario da Igreja dos padres jesuítas e do Hospital do Colégio.

No interior das três enfermarias do Hospital Militar da Bahia, o ar repugnante das ditas enfermarias vilíssimas e infectas, tuberculizava a todos; militares doentes não reprimiam as dores, angustias, penares e tristeza arrepiada; soldados, de cara sudorosa, e voz gemebunda, tão sujeitos a defluxos, e constipação, sofriam de um catarro crônico e apresentavam sacudidelas com aflições da tosse, cuspilhando a sua defluxão; um furriel, de camarinhas de suor na testa, morreu, de repente, com uma aploplexia; acolá, um marinheiro, cor de terra, triste e macerado, olhos encovados, onde bailavam lágrimas, com um “scirro” no estomago, estava por dias; adiante, um desertor da galé, tísico, definhando progressivamente, em adiantado grau de consunção; os intestino de alguns enfermos se aliviavam com estampidos.

De quando em vez, o sino carrilhoante da Igreja do Colégio conferia ar claustral, solene e soturno, às vetustas arcarias e pilares do Hospital Militar da Bahia.

Sábado, 17 de fevereiro de 1827 – O médico “Sarg.mor, e Insp.or” Manoel da S. Boaventura Ferraz, oficiava ao vice-presidente da província da Bahia, Manoel Ignacio da Cunha e Menezes, ao depois Visconde do Rio Vermelho, que “Tendo secado a cisterna desta caza, e p.r isso augmentado a despeza da Adm.am com a affectiva compra de agoa necessaria para fornecer as enfermarias, e Cozinha, e ainda assim corrrendo o risco de nem sempre, ou em differentes oras achar-se para comprar: requeiro a V. Ex.ca se Digne mandar a quem competir preste 12 forçados, para com os já determinados para o m.mo Serviço possão fazer as precizões deste Hospital.”

Quarta-feira, 21 de fevereiro – O “Sarg.mor, e Insp.or” reclamava ao vice-presidente que “Havendo-me requizitado o 1.º Medico deste Hospital, mandar desentupir as cloacas pelo estado immundo em que se achão as das Enfermarias aponto d’exalar cheiros pestiferos aos enfermos, e bem assim aprecizão que deve concertar certos lugares nos telhados quebrados p.r onde corre agoa nas occaziões que chove, ealgúas taboas dosolho: requeiro a V. E.ca para que o Trem Militar proceda ao mesmo concerto.”

Quinta-feira, 12 de abril – Ao 3.º presidente da província da Bahia, D. Nuno Eugenio de Lossio e Seilbitz, o mesmo administrador do Hospital Militar da Bahia requer que “Neste Hospital ha necessidade de banquetas com suas gavetas para que sobre aquellas comão, enestas guardem os doentes oseu alimento, livres porisso de ofazerem na propria cama, oq’ alem da indecencia, he prejudicial ásaude pelo calor da enfermidade que recebe opão; etambem ha precizão de caixas de retrete para servirem aos enfermos q.’ não podem ir ás cloacas, afim de evitar mãos vapores, como tudo tem observado os facultativos, edebalde requizitado não lhes sendo proficuo oserem esses utencilios mencionados nas instruções q.’ servem aqui do Regim. to, dadas pela Junta da Fazenda Publica, que anada providenciado, ealem disso S. M. I. quando aqi Veio notou essas faltas, que Mandou fossem reparadas. Requeiro portanto a V. Ex.ca 250 banquetas com gavetas e chave, e 100 Caixas de retrete para serem applicadas aos fins q.’ hei expendido.”

Sexta-feira, 9 de fevereiro de 1827 – O “Cirurg.m Ajud.e do Dia”, M.el Ignacio Lima Corte Real, relatou na parte de atendimento médico: “No dia 8 pela meia noite entrou neste Hosp. tal Militar hum ferido mortal de necessicid. e de condução em huma rede, e Condutor o Sold.o Elias Franc.º do B. am de Minas: A falar o ferido dizia ser Felix de Tal, homem pretto com huma ferida na parte superior da garganta mortal, p.r se achar toda a d.ª sepparada Esofago e Tracheia com m. ta perda de sangue e prestando-lhe logo o seu curativo foi acabando a existensia da Vida, cuja ferida tinha de instenção huma chave de mão aberta e profundid. e o dedo todo mostrador e mostrava ser feito p. r . instrumento de ferro cortante e perfurante.”

No dia 9, pela manhã, o sargento-mor e inspetor comunicou o sucesso ao presidente da província, D. Nuno Eugenio de Lossio e Seilbitz, classificando a vítima de “Criólo”, sendo, após o óbito, transportado pelo mesmo condutor para o “Hospital da Mizericordia”.

Sábado, 10 de fevereiro – O “Cirurg.m Ajud.e do B.am 14”, Joaquim Jozé Baptista atendeu “pela hua hora da tarde de 10 do Corr.e no Hospital Militar o Soldado desertor do Batalhão N.º 15, 6.ª Comp.ª Jacó de S. Tiago, para ser curado de varias feridas, a saber, aprimer.ª setuada na parte anterior do Coronal. em direção longitudinal, com duas polegadas d’extenção interessando só o tegumento; mostrando ser feito p.r instrumento contundente: a Seg.da setuada nap.e superior e anterior da coxa esquerda, com hua polegada depenetração, e de figura esferica; a terceira setuada na mesma coxa, quatro dedos a baixo desta primer.ª com trez polegadas de penetração, e de figura esferica; a quinta setuada na parte posterior e inferior do tronco com hua polegada de penetração asolaiada para ap. e lateral esquerda, e de figura esferica; todas estas trez ultimas feridas, mostrarão terem sido feitas por instrumento perfurante; alem destas feridas, trasia toda região lombar e dorsal bastante-m. e contuzas. Os simptomas prevenctivos não indicavão perigo de vida, e só os consecutivos, seg.do agravid.e com q.’ se manifestarem, he q.’ podem fazela recear.

Nessa mesma tarde, pelas trez horas, veio mais o prezo de justiça Joaquim Antonio, para cer curado de hua ferida setuada na parte lateral esquerda do Coronal, com trez polegadas de estenção, indireção longitudinal, interessando só-m.e o coiro cabeludo: mostrava ter cido feita por instrumento incizivo, e não indicava perigo algum. Hospital Militar Imperial 11 de Fevereiro 1827”. (Observação: o cirurgião já denomina o Hospital Militar da Bahia de “Hospital Militar Imperial”).

Como de praxe, o sargento-mor inspetor faz o comunicado da ocorrência médica ao presidente da província, fundamentado na parte médica emitida, acrescentando que o soldado desertor foi conduzido ao hospital pelo “soldado da Polícia da 9.ª Comp.ª Manoel Francisco.” Quanto ao preso de Justiça, foi aditado na parte que o mesmo se achava na “Cadeia”, sendo conduzido ao hospital pelo “Soldado da Guarda Principal do B.am N.º 3 da 2.ª L.ª e 2.ª Comp.ª Felisberto Pereira Pinto.” “Depois da primeira cura, ficarão doentes neste.”, finaliza o relatório.

Segunda-feira, 12 de fevereiro – O cirurgião ajudante do dia. Manoel Ignacio de Lima Corte Real, relatou que “Pelas cinco oras emeya da manhã entrou neste Hosp.tal Militar trez feridos p.ª se curarem conduzidos pelos sold.os da Policia a saber: Maria dos Reis, criôla forra com huma ferida sobre o terço superior do Cubitos do antebraço direito feito p. r instrum. to ponteagudo com polgada e meya de profund.e e meia de instenção; M.el Geraldo branco com huma ferida feita na parte media externa do antebraço esquerdo com discubrim.to do osso Rádios com ofença de partes e perda de sangue com cinco polegadas e meya de instenção mostrando ser feito p. r instrum. to cortante e perfurante; Ant.º Jozé de Almd.ª pardo forro com hua ferida contuza na Cabeça sobre o occipital lateral direito com polegada de pouco mais de instenção e meya de profundid.e com perda de sangue mostra ser feito p.r instrum. contundente cujos trez ferim.tos no prezente mostrão não levar perigo de vida só sim sobrevindo insidentes consecutivos.”

No mesmo dia 12, o sargento-mor inspetor oficiou ao presidente da província dando parte da ocorrência médica, consubstanciado no relatório do cirurgião ajudante do dia, aditando ao informe que os paisanos e a crioula forra foram conduzidos ao Hospital Militar pelo Soldado da Policia 2.ª Comp.ª Manoel Joaquim, voltando todos com o mesmo condutor, após curados.

Quarta-feira, 14 de fevereiro – O cirurgião ajudante do dia, Manoel Ignacio de Lima Corte Real, assim registou na sua parte referente ao atendimento no dia 14 de fevereiro de 1827: “Entrou neste Hosp.tal Militar pelas nove oras da noite hum pretto Nação Bornú q.’ diz ser escr.º de Joaq. m Soares p.ª se curar de trez pequenas feridas conduzido p.r Sold.os da Policia cujos ferim.tos vem a ser duas pequenas fizuras ou escuriaçoens, hua sobre a falange do dedo Polex, e outra dobre a segunda articulação do dedo indicador e huma ferida insiza na parte media lateral externa da Coxa esquerda com meya polgada de instenção e fundo polgada e meia com perda da falange no prezente não corre perigo de vida e mostra sewr feito p.r instrum.to cortante e perfurante.”

No dia seguinte, 14, ao vice-presidente da província, Manoel Ignácio da Cunha e Menezes, o mesmo sargento-mor e inspetor participou a ocorrência médica. “sendo conduzido pelo Soldado da Policia 1.ª Comp.ª Ignacio Felix” e “voltou com o m.mo Conductôr”.

Terça-feira, 27de fevereiro - O cirurgião ajudante do B.am N.º 4, Joaquim Jozé Baptista, relatou que “Hontem 26 do Corr.e pelas tres horas da tarde em diante vierão á este Hospital Militar para çerem curados os feridos seg.es: Felipe, escravo q.’ disia çer de D. Manoela, com duas pequenas feridas situadas, h’ua, na p.e anterior do Coronal, e a outra sobre o parietal esquerdo; ambas com meia polegada de extenção interessando o coiro cabeludo, sem denotar perigo algum.

As quatro horas, o preto Julião, escravo q.’ disia çer do Major Manoel Alv.s , com hua ferida situada sobre o alto do parietal esquerdo, com duas polegadas de extenção, indereção oblicua, intereçando toda espessura molle e vaso arterial, sem denotar pelos simptomas premetivos perigo de vida,

As seis horas da m. ma tarde o Paisano Antonio Jozé de Souza, com hua ferida triangular situada sobre o alto do parietal esquerdo, com duas polegadas de extenção triangular, intereçando toda espessura tegumento-muscular, sem denotar pelos simptomas perigo algum.”

Ao sobredito vice-presidente da província da Bahia, o sargento mor e inspetor remeteu a sua habitual e rotineira comunicação respeitante ao sucesso hospitalar, acrescentando que “o preto Felippe escravo que disse ser de D. Manoela de tal, sendo conduzido pelo Soldado do B.am de Minas .4 ª Comp.ª, que se achava no Serviço na Policia Adrião Ferreira.”

O “preto” Julião foi “conduzido pelo Soldado do B.am de Minas 4.ª Comp.ª, também em serviço na dita, Leonardo Pacheco” e o paisano Antonio Jozé de Souza foi “conduzido pelo Soldado do m.mo B.am dito, e 5.ª Comp.ª, e no mesmo serviço, Floriano Roiz;” e “voltarão co-ósm.mos conductores.”

FONTES

Manuscritas, originais e inéditas.

Arquivo Público do Estado da Bahia
Presidência da Província
Militares – 1826-1827
Seção de Arquivo Colonial e Provincial – Maço n.º 3737

 

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