HISTÓRIA DA MEDICINA artigo 45

POR DENTRO DO HOSPITAL MILITAR DA BAHIA NO ANO DE 1827

Dr. Antonio Carlos Nogueira Britto
Vice-presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins.
Fundado em 29 de novembro de 1946

ASPECTOS INÉDITOS DO DIA-A-DIA DOS ATENDIMENTOS DE URGÊNCIA E NOS PROCEDIMENTOS DA ADMINISTRAÇÃO NOSOCOMIAL.

PARTE III

Sexta-feira, 2 de março de 1827 – Lá pelas 7 horas da manhã, um africano Nagô, da África Ocidental, forro, que alcançou licença para visitar seu ex-senhor, paisano, doente, acabava de sair pela porta principal do Hospital Militar da Bahia, a única porta que se mantinha aberta durante a noite. Ao transpor o pórtico, foi fiscalizado com a maior exatidão pela sentinela e sob o olhar soslaiado e sonoleado do porteiro, que tinha em seu poder a chave do portão, e de outra qualquer porta, que comunicasse com o interior do hospital. O africano aparentava ter 30 anos de idade, de boa estatura, com sinais de bexigas pelo rosto, boca regular, com falta de “queixais” inferiores, conhecido por ser doente dos olhos, sobre os quais tinha uma película, de andar banzeiro, caminhando sempre descalço, deitando os pés para dentro e um pouco borquilho, roto do umbigo. Vestia roupa branca e calça de casimira alvadia e chapéu do Chile. Chamava-se Gaspar, tinha por ocupação ser enrolador de fumo doméstico e tinha por costume, nos domingos, quando saia a vender fumo, anunciá-lo por meio de toque de corneta, proferindo frases na língua portuguesa e, de quando em vez, no idioma inglês, de maneira assaz incorreta.

Gaspar recostou-se em uma das colunas de mármore do alpendre do pórtico do Colégio que fora dos Jesuítas e chorou. Exprimia profunda tristeza com soluços e lágrimas ao ouvir, há pouco, no Hospital Militar, o sargento-mor e inspetor comentar com o cirurgião-ajudante do Batalhão nº 14 a respeito do incêndio de ontem na cidade baixa, quando o Hospital recebeu para serem curados “feridos, maltratados alem dos Militares da 1.ª L.ª, 1 Soldado da 2ª Linha, e mais 2 paisanos, estes e aquele Officiaes de Carpinteiro.” E acrescentava que estava “na dúvida se os devia conservar até inteiramente se restabelecerem;” ou se os devia “enviar ao Hospital da Caridade, como se pratica nesta caza, apenas feita a primeira cura; com aqueles que aqui são recolhidos p. r desordem; e ser o cazo de pertenderem esses enfermos serem removidos as suas cazas para curararem-se nellas.”

Inquietava-se e afligia-se o bom Gaspar pela possibilidade do seu ex-senhor ser removido para a sua casa de residência sem estar completamente restabelecido das queimaduras da face, região anterior do tórax e mãos, que lhe causavam dor intensa.

Domingo, 4 de março de 1827 – Uma junta médica, composta do Dr. Antonio Polycarpo Cabral, 1.º médico interino, Francisco de Paula de Araujo e Almeida, 2.º médico interino e Antonio Jozé de Souza Aguiar, cirurgião-mor, oficiaram ao 3.º presidente da província da Bahia, D. Nuno Eugenio de Lossio e Seilbitz, o resultado do exame dos praças: “Em cumprimento da Portaria de V. Ex.ª, datada de hontem 3 do Corr.e, os abaixo assignados procederão ao exame dos Praças do B.am n.º 26, q.’ se achão recolhidos neste Hospital Militar, e attentarão q.’ estão capazes de embarcar os, q.’ constão de relação incluza.”

“Relação dos Praças do B.m N. 26, q.’ se achão no Hospital, capazes de embarque.

1ª Comp.ª

João de Souza Campos
Cipriano Jozé da Cruz
Jozé Franc.º Roiz.
Felippe Jozé Ant.º
Agostinho J.e dos Santos

2.ª Comp.ª

Jozé Hilario
João Chrisostomo
Antonio Marciano
Jozé Joaq.m de S.ta Annna
Domingos Francisco
João Quintiliano
Nichozio Jozé
Ant.º Manoel da Cruz
Martinho Lagoa
Fran.co Manoel de Sande
Domingos Vicente

3.ª Comp.ª

Manoel Fran.co do Rosário
Victorino de S ouza
Manoel Mateos
José Joaq.m Moreira
Joaq.m Guilherme
Bernardo Fran.co Ant.º
Ant. º Per.ª de Sz.ª
Ant.º Franc.º dos S. tos

4.ª Comp.ª

João Manoel
Jozé Victorino de Souza
Vicente Ferr.ª de Jesus
João Baptista
João Damasceno
Jozé Fran.co
Jozé Ant.º Ferr.ª
Alex.e Soares

Antonio Polycarpo Cabral 1.º Medico interino, Fran.co de Paula de Araujo e Alm.da, 2.º Medico interino e Antonio Jozé de Souza e Aguiar, Cirurgião mor.

Em 5 d’Abril de 1827.”

Segunda-feira, 12 de março – Com data de 13 de março, o cirurgião-ajudante do B.am Joaquim Jozé Baptista registou a seguinte ocorrência: “Hontem 12 do Corr.e pelas duas horas da tarde, veio á este Hospital Militar o preto de nome Benedito, escravo q.’ dezia cer do Ten.e de Policia Antonio Joaq.m Corr.ª das Neves, para cer curado de hua ferida setuada sobre o supercilio do olho direito, indireção transversa, com hua polegada de extenção interessando toda espessura tegum.to – muscular: alem disso, trasia fractura do cubitus e ante-braço esquerdo, sendo a dita na parte media, mostrando ter sido feita, pr corpo contund.e, sem denotarem tanto hua lesão como a outra perigo de vida, e só pequena diformid.e”.

No dia seguinte, 13 de março, o sargento-mor e inspetor comunicou a parte médica ao presidente da província, aditando que o ferido tinha sido conduzido pelo soldado do “B.am N.º 14, 1.ª Comp.ª que se áchava em Serviço na Policia Antonio Francisco Borges...” “ ...e “voltou co’ o m.mo conductôr.”

Terça-feira, 13 de março – Lá pelas 3 horas da tarde daquele dia, o cirurgião ajudante do dia, Manoel Ignacio de Lima Corte Real registou que “veio um Sold.º da Bateria, p.r appelido Chagas, conduzido p.r hum Camarada do mesmo B.m faltando-lhe já todos os Sign.s da vida até os orgãos da voz e Respiração, aprestando-se o seu curativo perdeo logo a consciencia e o falar p.r tér recebido huma grande combustão, com offença do todo; e as mãos deslaceradas e mais p.tes nobres e vasos arteriais Março Hosp.tal Militar erat supra”

No dia seguinte, 14 de março, o sargento-mor e inspetor Manoel de S. Boaventura Ferraz comunicou o acidente ao sobredito presidente da província, acrescentando na parte que “veio ferido para este Hospital, remetido da Bateria de S. Paulo denominada =Comboa = o Soldado do 7º Corpo d’Artilharia Francisco das Chagas Ferreira, sendo conduzido pelo Soldado do m.mo Corpo, Jozé Rafael, e no curativo falecêo.”

Segunda-feira, 26 de março – O cirurgião do dia, Francisco de Paula S. Rita, consignou, nesta data, a seguinte ocorrência: “No dia 26 do corr.e p.las nove oras e meia da noite, vierão á este Osp.l Militar os feridos seguintes para serem curados.

O Sold.º da 4.ª do Corpo da Policia Matheus de S. Eufigenia, com ‘uma ferida no dedo minimo da mão esquerda, sobre a sua face interna da 2.ª falange, com polegada d’extenção, compreendendo toda espessura mole, em direcção semi-transversal, mostrando ser feita por meio de Corpo Cortante bem como ûm caco, e sem denotar perigo algum.

O preto de nome Domingos, que diz ser escravo de Pedro Gomes, com ûma ferida na parte lateral esquerda do tronco sobre as costellas verdadr.as, com polegada de boca, e tres de profundid.e; sendo esta assoslaiada para a parte posterior do tronco, mostrando ser feita com instrum. to perfurante, no pres.e não denotta perigo. Salvo se aparecerem simptomas máos.”

Como de costume, no dia seguinte, 27, o sargento-mor e inspetor dá ciência do sucesso ao presidente da província, esclarecendo que o Soldado da Policia 1ª Comp.ª Matheos de S.ta Efigênia, foi conduzido pelo Furriel da m. ma, Silvestre Jozé; e o preto Domingos, ... foi conduzido pelo Soldado da Policia 2 Comp.ª Manoel Feliciano e ...voltarão com os m.mos Conductores.”

Quarta-feira, 28 de março de 1827 – O sargento-mor Manoel de S. Boaventura Ferraz comunicou ao presidente da província que “Havendo-se despedido deste Hospital para a Assembléa da Nação, onde hé Deputado, o 1.º Medico Jozé Lino Coutinho; requeiro á V. Ex.ª a nomeáção de quem o substitua, á vista da precizão em que se está de quem componha a Junta Medico Cyrurgico, para deliberar á cerca d’exames a que V. Ex.ª tem mandado proceder p.r seus respeitaveis Despachos.” (*)

NOTA

(*) Dr. Jozé Lino Coutinho – (1784-1836) Lente de Patologia Externa.

Nascido em Salvador, Bahia, a 31 de março de 1784 e aqui faleceu em 21 de julho de 1836. Graduou-se pela Universidade de Coimbra, Portugal.

Deputado às Cortes de Lisboa, em dezembro de 1821. Lente proprietário da Cadeira de Patologia Externa, em 1825. Deputado Geral no período de 1826 a 1829. Reassumiu a cátedra em 1829. Reeleito Deputado pela Bahia no período de 1830-1833. Convidado pela primeira regência, ocupou a Pasta da Justiça, tomando posse a 16 de julho de 1831. Foi o primeiro diretor efetivo da Faculdade de Medicina nomeado pelo Governo (1833-1836). Condecorado com a Ordem Imperial do Cruzeiro. Médico honorário de D. Pedro I.

Na sua bibliografia, são destacadas as obras Tipografia Médica da Bahia, 1832; Memória sobre as Águas Minerais da Bahia; Projeto de reforma das Escolas de Medicina, Rio, 1827 e muitas outras.

Cf. Moniz G. A medicina e sua evolução histórica. Diario Official da Bahia – Edição Especial do Centenário. Salvador, 1923. p. 424-425, 1923

Oliveira ES. Memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia, concernente ao ano de 1942. Universidade Federal da Bahia: Salvador, p.389-390, 1992

FONTES

Manuscritas, originais e inéditas.

Arquivo Público do Estado da Bahia
Presidência da Província – Militares – 1826-1827
Seção de Arquivo Colonial e Provincial
Maço nº 3737

 

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