HISTÓRIA DA MEDICINA artigo 46

POR DENTRO DO HOSPITAL MILITAR DA BAHIA NO ANO DE 1827

Dr. Antonio Carlos Nogueira Britto
Vice-presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins.
Fundado em 29 de novembro de 1946

ASPECTOS INÉDITOS DO DIA-A-DIA DOS ATENDIMENTOS DE URGÊNCIA E NOS PROCEDIMENTOS DA ADMINISTRAÇÃO NOSOCOMIAL

PARTE IV

Sábado, 21 da abril de 1827 – “Hontem 21 do Corr.e pela hua hora da tarde, veio á este Hospital Militar o preto Gervasio, escravo q.’ disia ser d’Salvador Munis, para cer curado de hua ferida setuada transversalm.e na parte media e anterior do pescoço, com seis polegadas de extenção, interessando toda espessura anterior do pescoço com divisão da thaquiarteria, e ferida da veia jugular interna do lado esquerdo: mostrava ter cido feita por instrum.to incisivo, e pelos simptomas premetivos indicava morte proxima, pelos estado de sufocação, sincopes, pulço pequeno e concentrado, e suor continuo.” Este foi o relatório elaborado pelo cirurgião ajudante de batalhão Nº 14, Joaquim Jozé Baptista, firmado pelo mesmo em 22 de abril de 1827.

No dia seguinte ao sucesso, 22 de abril, o sargento-mor e inspetor Manoel de S. Boaventura Ferraz oficiou ao novo vice-presidente da província da Bahia, Manoel Ignacio da Cunha e Menezes “Participava que a húa da tarde do dia 21 do Corrente, veio curar-se neste Hospital, o preto Gervasio escravo que dice ser d’ Salvador Munis, sendo conduzido pelo Cabo d’Esquadra do 2.º B. am de 2ª Lª e 4ª Comp.ª, que se achava de guarda no Comersio Custodio Angelo; com ferimento constante da parte incluza do Cyrurgião do dia, e depois da primeira cura, voltou com o m.mo conductor.”

De maneira inexplicável e fora do comum, o paciente obteve alta hospital em menos de 24 horas, não obstante o seu estado geral considerado grave, consoante o registo da exposição circunstanciada do cirurgião que o atendeu. (N. A).

Quarta-feira, 25 de abril – O sargento-mor e inspetor representou ao vice-presidente da província a respeito do comportamento disciplinar do militar (enfermeiro?) João Gualberto de S. Anna, quando diz que o “suplicante he cazado, porem mi consta que pouca, ou nenhúa assistencia faz com a familia, antes sendo m. to constante em se evadir daqui sem licença quer de dia, quer de noite, emprega esse tempo adulterando, e jogando, pelo que tenho em vistas despedi-lo deste Hospital, afim de não padecêr a aplicação dos remedios que deve fazêr aos enfermos no q,’tem encorrido em frequentes faltas.”

Uma petição, sem data, firmada pelo Administrador Manoel Lazaro Mendes, encaminhada provavelmente ao sargento-mor e inspetor Manoel de S. Boaventura Ferraz, contendo denúncia contra o enfermeiro-mor que pretendia alterar o mapa de cirurgia, com o acréscimo de dietas, foi exarado nos seguintes termos: “Senhor – Acontecendo que o Enfermeiro mor q’izesse, depois de se achar em meo poder o Mapa de cirurgia, altera-lo com o acrescimo de dietas, opuz-me por considerar que assim se viciava aquele Mapa, visto já se achar rubricado, e assignado pelo Professor, e mim principalmente porq’ o Cap 5º Art. 4º do Regulamento, diz q.’ no fim das vizitas os Professores assinarão o Mapa para o dia seguinte, depois de os conferir, para que nem sejão lesados os doentes, nem delapidada a Faz.da Publica, diz mais que no acto das vizitas rubricarão o acrescimo q.’ fizeram, e ultimamte recomenda q.’ não sejão jamais abonadas estas, se’ a Rubrica, e assinatura do Proffessor, cazo fossem acrescentadas no fim do mappa, e ainda peior conscentir alterar aquelas q’ já cobertas com a assignatura do Proffessor se sopunhão conferidas como manda o citado art., epor conseq.ª hu’ vicio vesivel q.’ podia resultar, em damno, edescredito meo: Com estas razoens representei ao Inspector, e anada attendendo manda tirar com violencia os generos da dispensa, prende-me, põem-me sentinela avista, e gemendo com opezo d’hua prisão injusta, e arbitraria conservo-me no Lugar da Administração de onde requeiro a Vossa Mag. e se Digne nomear pessoa q,’ sirva no meo impedim.to inventario do q’exisstir por cuja Graça

E. R. M.
Manoel Lazaro Mendes
Adm.or

Domingo, 6 de maio de 1827 – O sargento-mor e inspetor, Manoel de S. Boaventura Ferraz, reportou-se ao assunto em expediente ao vice-presidente da província da Bahia. em 6 de maio: “Depois deterem os Professores deste Hospital asignado o Mappa diario das dietas, e raçoens, e ordenado aos competentes Enfermeiros q.’ acrescentassem a caza de abonação das Enfermarias de S. Jozé, duas garrafas de vinho p.ª uzo dos doentes; p.ª a de S. Fernando huma de vinho, e p.ª a da Asumpção ½ quartilho de vinagre p.ª curativo dos respectivos enfermos; pratica q.’tem sido sempre observada am.tos annos neste Hospital, e a qual o actual Almoxarife setem sempre submetido sem repugnancia como era do seu dever, succedeu q.’ hontem 5 do corrente, se denegara aprestação daqueles pedidos, por ordem que passou aos seus fieis, q.’ nada entregassem, cuja falta sendo-me reprezentada pelo Enfermeiro-mór, e procurando eu o Almoxarife, p.ª saber acauza de semilhante denegação, e não o encontrando, fui obrigado m.mo adescer á cozinha, e ordenar aos fieis, q.’ i’mediatam.te fizessem effectuar aqueles acrescimos pedidos, p.ª q.’ os doentes já mais sofressem o menor prejuízo, o q.’ com efeito executarão, e constando-me q.’ forão asperamente estranhados pelo Almoxarife, por terem dado cumprimento aminha Ordem; foi p. r isso precizo entender-me hoje com este empregado. Nesta entre vista, em o arguio do seu procedimento, fui p.r elle repelido com as insultantes palavras de despota, e arbitrario, e outros termos grosseiros, que me não ocorrem pelo calor de que fui apoderado pelos mesmos insultos em consequencia pois da dezobediencia e insultante manr.ª com q.’ fui provocado sem o menor respeito, perante alguns empregados da caza, eu o prendí a Ordem de V. Ex.ª dentro nom.mo Hospital, evitando asim actos, q.’ se poderião seguir pouco airozos, e q.’ o momento da colera cegando a razão não daria lugar a reflicti-los, cumpre-me mais declarar a V. Ex.ª, q.’ o dobre dito Almoxarife passando a desculpar-se com o Medico dêo p.r evaziva da denegação ao q.’ tinha sido pedido afutil desculpa, q.’ estes pedidos tinhão sido acrescentados depois da assignatura dos mappas pelos Professores, esquecendo-se q.’ este sempre fora o costume, e q.’ elle sempre se prestou, e q.’ demais há no fim dos mappas parciais, de cada Enfermaria q.’ constitui o mappa geral, hu’a caza vazia destinada p.ª os m.mos acrescimos; e q.’ estes erão no outro dia validados pelas novas assignaturas, q.’ fazem os Professores, como são authorizados pelo artigo 2.º do Capitulo 9.º do Regulamento deste Hospital: Já reprezentei a V. Ex.ª q. to o Almoxarife abuzivam.te se tem opposto as m.as determinações alias fundadas em justiça, etendo p.r objecto o bem deste Hospital pois são em tudo conformes ao Regulam.to do m.mo. Quer elle q.’ eu não tenha a menor authoridade no q.’ pertence a sua administração e ainda menos naqueles individuos q.’ alli servem com elle: Teimou em não dar cumprim.to ao q.’ lhe ordenei p.r escripto. A reprezentação de todos estes factores não houve solução; e o Almoxarife, tal vez sciente della, cheio de ufania, progredio em ouzadias, com as quais não se pode accomodar h’u militar, q.’ sempre fez timbre de respeitar, e obedecêr aos seus superiores, convencido deq.’ esta he abaze emq.’ se firma o edificio social. Estou m.to certo q.’ não sendo cohibidos tais excessos, serão frequentes as dissenções do Almoxarife; com migo, q.’ virei a ter quebra nam.ª jurisdição, e com os Facultativos, e mais empregados com os q.es ja elle vivia em rixa q.do p.ª aqui entrei. Torno pois a suplicar a V. Ex. a q.’ tomando em consideração q.to respeitozam.te tenho dito medê as providencias mais adequadas p.ª q.’ dezappareça tanto orgulho, e altivez, o q.’ sepero de ver a V. Ex.ª, ganhando por este módo a tranquilidade do meu espírito, e boa vontade de servir em hú emprego q.’ sendo de tamanha responsabilidade, sermehia este suave hu’a vez q.’ he essencialm.te dirigida ao bem da Humanidade.”

A sobredita representação foi respondida em 7 de Maio de 1827. (Não se conhece o texto da resposta – N.A.)

Domingo, 6 de maio de 1827 - O cirurgião do dia, Dr. Francisco de Paula S. Rita registou o atendimento de um paisano que compareceu ao Hospital Militar da Bahia: “No dia 6 do corr.e p.ãs onze oras da noite, veio a este Osp.l Militar o paisano Januario J.e do Espirito Santo, para ser curado de seis feridas incizas: a saber, a 1.ª d.ª no dorço do dedo anular da mão direita, em direcção transversa, interessando toda espessura mole, com discobrim.to do osso: a 2.ª d.ª na Cabeça, sobre a sua parte lateral esquerda, com tres polegadas d’extenção, compreendendo a espessura tegumento-muscular; a 3.ª d.ª na p.te superior do rosto, e anterior da Cabeça, de tres polegadas d’extenção, interessando som.e tegm.tos ; a 4.ª d.ª proxima a esta no intervalo que deixa as sombrancelhas entre sí, com polegada d’extenção interessando toda espessura mole; a 5.ª proxima a esta a cima do supercilio direito, com duas polegadas d’extenção, sendo superficial; a 6.ª d.ª no rosto no seu lado direito com duas polegadas d’extenção superficiam.te interessando os tegum.tos, e mostravão serem feitas com instrum.to Cortante: no pres.e não denottão perigo, salvo si sobrevierem consequencias más.”

No dia seguinte, 7, o sargento-mor inspetor participava a parte médica ao vice-presidente da província, acrescentando que “o crioulo paizano Januario Jozé do Espirito Santo foi conduzido ao Hospital pelo Soldado da Policia 1ª Comp.ª João Francisco, ... e “voltou com o m.mo Conductor.”

Sexta-feira, 11 de maio – Foi consignada a seguinte parte médica pelo cirurgião ajudante do batalhão n.º 14, Joaquim Jozé Baptista: “Hontem, 10 do Corr.e pelas 6 horas da tarde, veio á este Hospital Militar, o Guarda Marinha Antonio Cardozo, para cer curado, de hua ferida setuada na façe palmar do dedo polex, da mão esquerda, com hua polegada de extenção, intereçando tegum.tos e musculos: mostrava ter cido feita, p.r instrum.to incisivo, e não denotava perigo algum.”

A participação da ocorrência remetida ao vice-presidente da província pelo sargento-mor e inspetor, datada de 11 de maio, aditava que “recolheó-se ferido para este Hospital sem conductor, o Guarda Marinha Antonio Cardozo de Carvalho, declarando ter sido ferido p.r hu’ Soldado do B.am de Minas, ... “e depois de curado voltou.”

Sexta-feira, 11 de maio - O almoxarife do Hospital Militar da Bahia, continuava causando quizila ao sargento-mor e inspetor do dito nosocômio, conforme os termos exarados na representação da sobredita data, encaminhada pela referida autoridade do hospital ao vice-presidente da província: “Tendo na tarde de 7 do Corrente cumprido a Ordem de V. Ex.ª em mandar relaxar da prizão o Almoxarife deste Hospital; sem q.’ mais comigo se avistasse, sahio, e até este momento aqui não tornou; e de sua caza tem determinado aos seus Fieis, e com a maior incompetencia ao Escrivão o q.’ deve fazer no Hospital: Sendo q.’ não tem impedim.to pessoal p. r q.’ em todo esse tempo q.’ há faltado, consta-me ter sahido á rua, e q.’ foi á Caza da Fazenda Publica receber dr.º p.ª as despezas. Este procedim.to tenho tolerado afim denão retardar, eperigar hu’ serviço publico, e de tanto melindre p.r q.’ não tem poder de delegar os seus deveres sem permissão da Junta ou de V. Ex.ª; havendo participação amim do seu legitimo impedim.to, e das Ordens q.’ ulteriorm.te lhe fossem dadas. Mas ainda no cazo de ter, elle Almox.e, enfermid.e, ou outro q.l .q.r impedimto , cumpria q.’ immediatam.te me fizesse sabedor p.r ser esta a pratica inalteravel em todas as Repartições.

Tudo vai a seu belprazer, hu’a vez q.’ não tem apparecido authoridade algu’a q.’lhe reprima os seus caprixos, e excessos. A V. Ex.ª pertence tomar em consideração, o q.’ tenho a honra d’expor-lhe, eprovidenciar pela maner.ª, q.’ for mais compativel com a sua rectidão e justiça.”

Domingo, 20 de maio – Os procedimentos contrários à disciplina levados a efeito pelo enfermeiro João Gualberto levou o sargento-mor e inspetor a oficiar a respeito ao vice-presidente da província: “O motivo que allega o Supp.e João Gualberto, não foi q.’me determinou a despedi-lo do emprego q.’ tinha de Enfermeiro; pois q.’ a falta q.’ lhe notei nessa occazião era unicamente, e apenas digna de hu’a reprehenção. Tenho pois de informar a V. Ex.ª q.’ as repetridas faltas do Supp.e as suas obrigações, sahindo do Hospital de dia, e denoite sem permissão minha p.ª nesse tempo empregar-se em jogos, e adulterando, como me consta; faltando assim á seria applicação de bem tratar os enfermos: tudo o referido he q.’ naforma doq.’ dispoem o Regulam.to deste Estabelcim. to foi que poderosam.te meimpellio a despedi-lo. Á vista do expendido V. Ex.ª determinar-me-há o que julgar mais acertado.”

Domingo, 20 de maio – O cirurgião-ajudante do dia, Dr. M. el Ignacio de Lima Costa Real, levou a efeito a parte de atendimento médico, nos seguintes termos: “As sette oras da noite entrou p.ª este Hosp.tal Militar Maximo Carv.º q.’ diz ser Sold.º do 1.º B. m de Milícia p.ª ser curado de huma ferida insiza cetuada no terso superior da coixa lateral direita contigua a cavid.e cotiloidea com cinco polgadas de extensão, e fundo tres emeya com sepparação de partes e vazos e emmorragia de sangue mostra ser feito p.r instrum.to cortante e no prezente não offerece perigo de vida só sim sobrevindo insidentes de cauza.”

No dia seguinte, 21 de maio, o sargento-mor e inspetor comunicou o fato ao vice-presidente da província, fundamentando-se, como sempre, na parte médica apresentada pelo cirurgião do dia, acrescentando que o ferido foi trazido “sem conductor” e se tratava do soldado do 1.º B.am de 2ª Linha e 6 ª Comp.ª Maximo de Carvalho, ... e depois da primeira cura, ficou doente neste.” (“doente neste”, isto é, internado no Hospital Militar da Bahia – N. A.).

FONTES

Arquivo Público do Estado da Bahia
Presidência da Província
Militares – 1826 – 1827
Seção de Arquivo Colonial e Provincial
Maço n.º 3737

 

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