HISTÓRIA DA MEDICINA artigo 47

POR DENTRO DO HOSPITAL MILITAR DA BAHIA NO ANO DE 1827

Dr. Antonio Carlos Nogueira Britto
Vice-presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins.
Fundado em 29 de novembro de 1946

ASPECTOS INÉDITOS DO DIA-A-DIA DOS ATENDIMENTOS DE URGÊNCIA E NOS PROCEDIMENTOS DA ADMINISTRAÇÃO NOSOCOMIAL

PARTE V

Sexta-feira, 1.º de junho de 1827 – O cirurgião ajudante do batalhão n.º 14, Joaquim Jozé Baptista, registou a seguinte ocorrência médica: “Hontem 31 de Maio, pelas onze horas da noite veio á este Hospital Militar o preto João, escravo q.’ desia ser de Antonio Agostinho, para ser curado de hua simples contusão setuada sobre oparietal esquerdo, acompanhada de hua simples e limitada ferida; a qual, nenhum curativo exegio.”

Ao vice-presidente da província, Manoel Ignacio da Cunha e Menezes, o sargento-mor e inspetor Manoel de S. Boaventura Ferraz participou a parte médica, no mesmo dia, acrescentando que o ferido foi conduzido ao Hospital Militar “pelo Cabo da Guarda Principal do 2.º B.am de 2.ª Linha e 6.ª Comp.ª Jozé Roberto da Silva,” ... e o doente, “depois da primeira cura, voltou com o m.mo conductor.”

Sexta-feira, 15 de junho – O estado valetudinário do cirurgião-mor do Hospital Militar da Bahia, Antonio Jozé de Souza Aguiar, o obrigou a oficiar ao sargento-mor e inspetor do mesmo hospital, solicitando ser “remediada” a sua falta ao trabalho: “Por que se tem augmentado o meu padecimento da molestia, a qual me impede de comparecer nesse Hospital, p.ª desempenho da minha obrigação, vejo-me na circunstancia de isto mesmo participar a V. S.ª, p.ª levar por seu intermedio esta minha participação ao conhecim.to do Ex. mo Snr’ Vice Presidente desta Prov.ª, afim de ser remediada esta minha falta.”

Sábado, 16 de junho – A comunicação da perturbação da saúde do cirurgião-mor do Hospital Militar da Bahia, ensejou o sargento-mor e inspetor do dito hospital a solicitar um “hu’ habil Facultativo em Cirurgia p.ª servir no impedim. to do effectivo,”, consoante se lê no seguinte ofício da sobredita data: “Levo á respeitavel prezença de V. Ex.ª, a parte de doente q.’ dá o Cirurg.mor (*) Antonio de Souza Aguiar: O unico Cirurg.mor q.’ fica existindo neste Hospital, hé o Ajud.e Franc.º de Paula S.ta Rita, q.’ na tem pericia na sua arte, nem he approvado. (**) Os outros dois Cirurg.ms Ajud.es (***)q.’ havião já forão recolhidos hu’ ao B.m 14 aq.’ pertence p.ª embarcar, e outro addido ao B.m 15 p.ª ser empregado no Prezidio do Morro. Cento e tantos são os enfermos, q.’ pertencem a Cirurgia e devem ser diariam.te curados; e hoje p.ª q.’ não experimentassem tal falta tendo aqui comparecido o Cirurg.m Ajud. e do B.m 14 Jozé Joaquim Baptista p.r ser approvado e ter grd.e pratica de curar os mesmos enfermos, com o effectivo Ciururg.mor o incumbi pedindo-lhe fizesse a vizita aos doentes q.’ havião entrado, e reconhece-se a alteração q.’ houvesse nos outros enfermos existentes; p.s q .’ o existente Ajud. e Franc.º de Paula S.ta Rita, p.r não ser approvado não póde mandar applicar aos doentes remedios internos.

Nesta crize requeiro a V. Ex.ª hu’ habil Facultativo em Cirurgia p.ª servir no impedim.to do effectivo, e tambem mais algu’ Cirurg.m Ajud.e p.ª coadjuvar, o curativo, e revezar com outro q.’ desde a sahida daqueles está efectivam.te de guarda neste Hospital.”

O sobredito ofício foi respondido em “23 do m.mo mez.” – (Não se conhece o teor do expediente em resposta ao assunto em tela. – N. A.).

Sexta-feira, 22 de junho – Esta foi a parte médica registada pelo “Cirurg.’ Alf.es do Bm 15, Fran.co de Paula S. Rita, estacionado no Hospital Militar”, datada de 22 de junho :“No dia 21 de Junho do corr.e p. ´las trez oras da tarde, recolhe-se á este Osp.l Militar o Marinr.º da Jurujuba Jozé Luiz, para ser curado de ûma ferida inciza na p.te anterior do pescoço, e alguma couza lateral esquerda, com tres polegadas d’extenção, interessando parte do musculo externo-cleido-Mastoido, e veia jugular, e com Emorragia venal, e tambem alguma arterial, mostrava ser feita com instrum.to cortante, e no prez, e não denotta maior perigo: Salvo se aparecerem consequencias más.”

Sobre o acontecimento de ordem médica, como de praxe, o sargento-mor e inspetor Manoel de S. Boaventura Ferraz fez a precisa participação ao vice-presidente da província, datada de 22 de junho, adiantando que “ ... o Marinheiro de bordo da Curveta Jurujuba J. e Luiz”, ... foi conduzido ao hospital ... “pelo Soldado da mesma João Martins,...”; ... “e acabada a cura ficou recolhido ao Hospital.”

Sábado, 23 de junho – “Franc.o de Paula S. Rita, Cirurg.’Alf.es do B.m 15 estacionado no Osp.l”, atendeu o marinheiro da escuna Mariana, consignando a seguinte ocorrência: “No dia 22 do corr.e pelas oito oras e meia da noite recolheu-se á este Osp.l Militar o Marinr.º da Escuna Maria’na de nome Narcizo Joaq.m, para ser curado de seis feridas: A saber duas d.as no peito ûma sobre omamelão direito, com ûma polegada d’extenção e polegada e meia de profundid.e , a outra proxima a furquilha do osso sternom, tambem com ûma polegada de boca, e polegada e meia de profundid.e : a 3.ª d.ª na face anterior do braço direito, com polegada de boca, e duas de profundid.e; estes tres ferim.tos mostravão serem feitos com instrum.to perfurante triangular; a 4.ª d.ª no labio superior junto acommissura esquerda, com polegada e meia de divizão ; a 5.ª d.ª na màçan esquerda proxima ao olho com duas polegadas d’extenção sendo superficial, a 6.ª no supercilio, ou sombrancelha do m.mo lado, com polegada e meia d'extenção, interessando som.e os tegum.tos ; estes mostravão serem feitos com instrum.to ou corpo contund.e , e todos estes referidos ferim.tos p.los simptomas primitivos não denottão perigo¨Salvo se sobrevierem consecutivos mãos.”

No mesmo dia, 23 de junho, o sargento-mor e inspetor do Hospital Militar da Bahia participava ao vice-presidente da província o sucesso, acrescentando que o ferido tinha sido levado ao hospital pelo soldado “Arvorado de Gd.ª de Ribr.ª”, - (Arvorado de guarda da Ribeira, a Ribeira das Naus, no Arsenal de Marinha - N. A . – Cf. ), João Pimenta do B.m N.12 da 2.ª Linha, 5.ª Comp.ª.”

Quinta-feira, 28 de junho – Vinte e cinco militares foram despedidos do Hospital Militar da Bahia, conforme se lê no ofício seguinte, datado de 28 de Junho, remetido pelo sargento-mor e inspetor ao vice-presidente da província: “Em cumprimento de Ordem, q.’ hontem recebi do Ex.mo Gov.or das Armas, por hu’a relação incluza á mesma Ordem, e firmada pelo Cirurg.mor Delegado do Cirurg.mor do Exercito, fiz despedir deste Hospital 11 praças do Batalhão 15, e 5 do Batalhão 14, entrando neste numero o Cirurgião-mor Fran.co Sabino Alv.z da Fonseca.”

Quinta-feira, 28 de junho – O médico Manoel de S. Boaventura Ferraz, sargento-mor e inspetor do Hospital Militar da Bahia, comunicou, na sobredita data, ao vice presidente da província que “hontem aprezentou-se-me o Cirurgião João Antunes Ferr.ª de Az.do Chaves, com Provizão de V. Ex.ª para servir interinamente o lugar de Cirurgião mor deste Hospital durante o impedimento do effectivo: o que cumpri.”

Quinta-feira, 28 de junho – O cirurgião do dia, do “Hospital Imperial Militar”, -(atentar para a denominação do nosocômio) – Jozé Ribeiro da Fonçeca, consignou três partes médicas referentes a pacientes por ele atendidos no sobredito dia: “As 4 oras e meia da tarde do corr.te, veio para o Hosp.l o Aspesada da 1.ª Comp.ª do B.m da Esquerda da Torre Placido Jozé Pessoa, com huma ferida longitudinal na parte superior do parietal esquerdo, com duas polegadas e meia de extenção, im teresando de profundidade tegum.tar; outra triangular na parte externa e inferior do braço esquerdo, com meia polegada de circomferencia, im teresando unicamente tegum.tos mais outra mais superficial na face externa da mão esquerda de figura iregular, cujas offenças mostra terem sido feitas com instrumento contundente, não de notta perigo:

Recolhe-se a este Hosp.l as 4 oras da tarde 28 do corr.te o sold.º da 1.ª Comp.ª do B.m da Esquerda da Torre Jozé ZaCarias Barboza, com huma ferida transversal na parte media do parietal esquerdo, com duas polegadas de extenção, im teresando tegum. tos unicam. te, mostra ter sido feita com instrumento com tundente, não de notta perigo:

As 5 oras da tarde 28 do corr.te , veio unicamente curar-se neste Hosp.l, o sold.º da 2.ª Comp.ª do B.m 14 de 1.ª Linha Marcos Jozé Luiz, com huma ferida na p.e externa e superior do braço direito, de figura triangular, com uma polegada de circomferencia, e com polegada e meia de profund.e, p.ª a p.e superior, mostra ter sido feita com instrumento perfurante, não de notta perigo.”

Na sexta-feira, 29 de junho, o sargento-mor e inspetor faz a sua habitual comunicação da parte médica ao vice-presidente da província; “Participo a V. Ex.ª q.’as 4 horas da tarde do dia 28 de Junho recolherão-se feridos e prezos a Ordem do Ex.mo Gov.or das Armas, o Anspessada do B.m da Torre, Placido Jozé Pessoa, e o Soldado do dito Zacharias Barboza, conduzidos pelo Sarg.to do B.m N.º 15 da 3.ª Comp.ª João Pedro da Roxa; e as 5 horas da tarde do dito dia o Soldado do B.m N.º 14 2.ª Comp.ª Marcos Jozé Luiz, conduzido pelo Cabo da 2.ª Comp.ª do dito B.m M.el Ant.to , e as 10 horas da noite do dito dia o Soldado do B.m N.º 28 1.ª Comp.ª Domingos Jozé conduzido pelo Cabo do dito B.m Fran.co das Chagas; todos com o ferimento constante da parte incluza do Cirg.m do dia.”

NOTAS

(*) – (***)Até o período da independência do Brasil, os médicos militares, ou médicos de tropas eram intitulados “cirurgião-mor” (ou “primeiro-cirurgião”) e “cirurgião-ajudante” (ou “segundo-cirurgião”). Estavam subordinados diretamente aos comandantes das unidades militares onde serviam. Ao capitão-general da capitania, que tinha a responsabilidade e função de presidente, ou governador, obedeciam hierarquicamente o cirurgião-mor e o cirurgião-ajudante, se estivessem trabalhando em hospitais reais militares e nos presídios. Da mesma maneira, àquela autoridade civil submetiam-se diretamente os físico-mores, formados em faculdades de medicina da Europa, quando estivessem a serviço nos sobre-ditos estabelecimentos.

Na Armada, os ditos cirurgiões estavam subordinados diretamente ao comandante da nau.

No Brasil, ainda sob o domínio de Portugal, o cirurgião-aprovado estava agregado às tropas, com o nome de “cirurgião-mor”, que se achavam incorporados aos regimentos, tropas de linha, os Terços, os regimentos de Dragões a pé e a cavalo, os regimentos de Ordenanças ou Milícias.

Os médicos militares não eram designados por uma patente. Todavia, eram reconhecidos pelo título profissional. Na hierarquia militar estavam posicionados ao nível de oficiais inferiores, abaixo dos alferes, ao lado do capelão, o quartel-mestre, os sargentos, músicos e pífaros.

Em 1809, um decreto concedeu a graduação de tenente aos cirurgiões-mores dos Regimentos de Milícias. e, ao depois, outra determinação outorgava a graduação de alferes aos ajudantes dos cirurgiões-mores dos Regimentos de Linha, se tivessem concluído o curso de Anatomia teórica e prática, ministrado no Hospital Militar. Destarte, os primeiros-cirurgiões (cirurgiões-mores) e os segundos cirurgiões (cirurgiões-ajudantes) receberam a nova patente, ou graduação, de tenente e alferes, respectivamente.

O “Cirurgião-mor do Exército”, a partir de 19.4.1849, tornou-se o “Chefe do Corpo de Saúde do Exercito”, e, proclamada a República, foi extinta a designação de “Cirurgião-mor do Exército” e o chefe do Corpo de Saúde recebeu a denominação de “Inspetor Geral do Serviço Sanitário do Exercito”, sendo o segundo ocupante desse posto o general de brigada médico João Severiano da Fonseca (1836-1887), ilustre alagoano, que é o egrégio “Patrono do Serviço de Saúde”.

(**) – A “Escola de Cirurgia”, criada a 18 de fevereiro de 1808, tinha como escopo formar “cirurgiões” – “cirurgiões formados” para extinguir os “cirurgiões licenciados”, e obtinham o “licenciamento” para exercer a prática da cirurgia por meio de “cirurgiões-mores” do Protomedicato ou autoridades da Câmara.

A Junta do Protomedicato, sediada em Lisboa, com delegados no Brasil, foi criada no governo de D. Maria objetivando fiscalizar o exercício profissional e o comércio de drogas e, aqui, os candidatos às “cartas de examinação” para o exercício de “cirurgião-barbeiro” e barbeiro eram examinados pelas autoridades do Protomedicato, que também cassavam diplomas e licenças, vistoriavam hospitais e apresentavam medidas de defesa sanitária em época de epidemias, e fiscalizavam o exercício profissional dos físicos, cirurgiões-barbeiros e parteiras.

Já o “Colégio Médico-Cirúrgico”, instituído por carta, de 29 de dezembro de 1815, do Príncipe Regente ao Conde dos Arcos, então governador da capitania da Bahia, porém iniciando suas atividades em 16 de março de 1816, procurou, da mesma forma, acabar com os “cirurgiões licenciados” e graduar “cirurgiões diplomados ou formados”, aumentando, para atingir o seu desiderato, de quatro para cinco anos a duração do curso, “extinguindo a possibilidade de, ao 3. o (terceiro) ano, o estudante requerer “licenciatura” ou “carta de cirurgião licenciado”, o que muitos faziam, não mais concluindo o curso, em razão de que, na prática profissional, “licenciado” e “formado” se confundiam e exerciam a profissão com iguais direitos.”

Com o Colégio Médico-Cirúrgico, os alunos aprovados no 5. o ano podiam receber a “Carta de Cirurgia”. Todavia, os estudantes que fossem aprovados plenamente em todos os anos e tornassem a freqüentar o 4. o e o 5. o, sendo aprovados com distinção nos exames, receberiam a graduação de “formados em Cirurgia”.

Com a elevação do Colégio Médico-Cirúrgico à Faculdade de Medicina, através da lei de 3 de outubro de 1832, como o aumento do curso para seis anos, com 15 disciplinas, defesa de tese doutoramento, deixou de existir a diferença entre “cirurgião” e “médico”, formando, destarte, o “médico” ou o “doutor em ciências médico-cirúrgicas”, especializando-se, ao depois, como “cirurgião”.

FONTES

FONTES PRIMÁRIAS MANUSCRITAS
ORIGINAIS E INÉDITAS


Arquivo Público do Estado da Bahia
Presidência da Província
Militares
1826-1827
Seção de Arquivo Colonial e Provincial
Maço n.º 3737

FONTES SECUNDÁRIAS IMPRESSAS  

1. Gouveia RA. Os 150 anos de Faculdade de Medicina da Bahia – Achegas e Reflexões. Anais Academia de Medicina da Bahia. Volume 7 – p. 87-88 - Julho/1987.

2. Filho LS. História Geral da Medicina Brasileira. Primeira Reimpressão. HUCITEC-EDUSP: São Paulo, 1.º Volume p. 297-298; 304. 2.º Volume p. 547; 548, 1991.

 

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