História da Medicina

artigo 03

continuação (02)
Discurso de Inauguração do Anfiteatro Alfredo Britto
Antonio Carlos Nogueira Britto
Vice-presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins.

Naquele tempo, no ano de 1905, o carnaval da Bahia já começava na quarta-feira que antecedia o tríduo de Momo. Na quinta-feira, 2 de março, o Clube Cruz Vermelha partia do Largo do Corpo Santo, às 19 horas, com destino à cidade alta, ao Terreiro de Jesus, passando pela Praça Castro Alves. A multidão de foliadores, distribuída confusamente, formiguejava, nas vias urbanas. De repente, as cornetas dos quartéis e o toque plangente dos sinos das igrejas badalavam o rebate, anunciando incêndio no distrito da Sé e arrastando a turba para o local. Magotes de populares, que mal dobravam a primeira esquina da “Rua do Collegio”, avistavam de longe, as labaredas raivosas que devoravam o majestoso edifício da Faculdade de Medicina da Bahia. Os gabinetes de Anatomia e de Higiene nada sofreram. Todavia, com alguns danos, foram salvos os gabinetes de Histologia, de História Natural, de Farmácia, de Física, de Fisiologia, de Odontologia e de Terapêutica. Também poucos estragos tiveram a secretaria, o gabinete do diretor, o salão nobre, a sala Abbott e o anfiteatro de Anatomia. Parte da sala dos retratos foi incendiada.

            O fogo consumiu os gabinetes de Anatomia Patológica, de Bacteriologia, de Química, além do almoxarifado e o gabinete de Medicina Legal, dirigido pelo professor Nina Rodrigues, que se achava equipado com modernos aparelhos de psicologia experimental. A capela dos Jesuítas,verdadeira preciosidade histórica, consagrada a São Estanislau de Kostka, capela do Hospital Real Militar, foi inteiramente incinerada.

            Da importante biblioteca da Faculdade, destruída, não escapou um só volume, sendo queimados 22 mil volumes. Doações de livros, teses, revistas, jornais e folhetos foram feitas de imediato, registrando-se como os primeiros doadores os Drs. Pacheco Mendes, Menandro Meirelles Filho, viúva Koch e outros. O Dr. Thomaz Rodrigues da Cruz, de Maruim, Sergipe, amigo dileto e colega de turma do meu bisavô materno, Dr. Pedro Ribeiro de Almeida Santos, graduados em 1871, doou 5 obras em 8 volumes, 83 teses encadernadas em 6 volumes, 73 teses em brochura, 3 volumes encadernados de revistas médicas e 117 folhetos diversos.

            Os trabalhos de reconstrução da Faculdade de Medicina começaram no dia seguinte, 3 de março, graças ao dinamismo do diretor Alfredo Britto. Telegrafando ao ministro do Interior, José Joaquim Seabra, foi por ele liberado um crédito de 600:000$00 para a reconstrução da Faculdade, contando, para tanto, com o apoio do presidente da República, Francisco de Paula Rodrigues Alves. O notável engenheiro Teodoro Sampaio coordenou os planos para as formidandas obras de reconstrução, seguindo os projetos do arquiteto Victor Dubugras, que contemplavam a Biblioteca, Medicina Legal, Morgue, Ciências Naturais, Pavilhão latrinas, Bacteriologia, Anatomia, Galerias, Anfiteatro, Histologia, Jardim, Higiene, Iluminação e Ventilação.

            Exonerado do cargo de diretor, em 4 de junho de 1908, Alfredo Britto não teve a dita de inaugurar sua fantástica obra de reconstrução, concluída e entregue em 31 de janeiro de 1909 pelo engenheiro João Navarro de Andrade, que havia substituído, nos últimos períodos dos trabalhos, o engenheiro Teodoro Sampaio.

            O magnífico paquete inglês “Thames”, de 3.033 toneladas, da “The Royal Mail Steam Packet Company”, zarpou do cais da cidade da Bahia no início da tarde de sábado, 2 de setembro de 1905, com destino a Europa, levando os viajores Dr. Alfredo Britto e sua digna consorte, D. Júlia de Almeida Couto Britto. Acometido de intenso “spleen”, estava a caminho do Velho Mundo para tratamento de sua saúde, abalada com os últimos acontecimentos, para representar a Bahia em congresso internacional sobre tuberculose, a ser realizado em Paris, no mês de outubro e para visitar os institutos de ensino superior na Europa, com o objetivo de avaliar os laboratórios que seriam implantados na sua Faculdade de Medicina, que estava sendo reconstruída. “A presteza da viagem, imposta pelo meu precário estado de saúde não permitiu despedir-me pessoalmente dos collegas e amigos”, lamentava-se.

            Na segunda-feira, 11 de setembro de 1905, o Dr. Raymundo Nina Rodrigues, recebeu de Alfredo Britto um telegrama da cidade do Funchal, na Ilha da Madeira, transmitindo a infausta e dolorosíssima nova de haver falecido no dia 8 de setembro, D. Júlia de Almeida Couto Britto. Poucos dias depois de ter partido do porto do Recife, foi D. Júlia enfermada pelo sarampo, que a fez sucumbir em pleno oceano Atlântico. Por se achar o “Thames” ainda longe de qualquer porto, dois dias antes de chegar à Ilha de São Vicente, depois de preenchidas as formalidades legais e religiosas de bordo, pelo capitão H.E. Rudge, foi o cadáver da pranteada D. Júlia, na presença da comovida equipagem britânica e perante o desolado e extremoso Alfredo Britto, lançado nas águas escuras e profundas do oceano, onde encontrou a derradeira jazida. Tinha ela 36 anos de idade e deixou na orfandade 4 filhos menores: Alfredo Couto Britto, com 12 anos de idade, Julieta, com 11 anos, Álvaro, com 10 anos e Armando, com 6 anos. Era filha do lente e conselheiro Dr. José Luiz de Almeida Couto e irmã da esposa do Dr. Nina Rodrigues, D. Maria Couto Nina Rodrigues.

            Da fatídica viagem, dolorosamente ferido no melhor, no mais alto e santo dos seus afetos, com o coração amargurado pela viuvez, retornou Alfredo Britto à Bahia, a bordo do paquete inglês “Danube”, no dia 29 de dezembro de 1905.

            Ressurgida das cinzas a Faculdade de Medicina da Bahia, avulta-se do grandioso conjunto de edifícios majestosos, o esplendoroso Anfiteatro Alfredo Britto, para 500 alunos, imponente rotunda cujo telhado é coroado por grande “lanternim”, circundado por graciosas colunatas gregas, sobre o qual emerge pomposo caduceu. Os que entram no Anfiteatro, quedam-se, subitâneos, silenciosos, comovidos e empolgados, ante a suntuosidade do seu interior, que a todos dá um sentimento de paz estudiosa e de religiosidade. Grinaldas e festões, de artístico e inspirado lavor, de suprema elegância, circundam e ornam o recinto, osculando a magnificente abóbada. Dotado de cortinas, que se fecham automaticamente; quadro-negro, que se reveza com tela de projeção cinematográfica; acústica perfeita, sendo desnecessário o uso de microfones; excepcional conforto térmico e fartíssima iluminação, natural e artificial. Os bancos, cor de ébano, reluzentes, de conceituada madeira de lei, na sua santificada dureza, jamais são motivos de queixas de lombosacralgia e de inconvenientes e pudicas enfermidades pela estase venosa. Neles, os estudantes de medicina literalmente “alisam os bancos das ciências”. A grande galeria está rodeada por lavoradas figuras de metal, belíssimas, assemelhadas a flor de lis, presas às grades de ferro que a circundam. À esquerda de quem entra, mostra uma tela, tamanho natural, onde o notável pintor Lopes Rodrigues retratou o imortal Alfredo Britto, descendo uma escada, coroado pela representação pictórica da glória.

            O resplandecente e pomposo Anfiteatro, poema arquitetônico, que fazia os circunstantes se sentirem em Faculdades de Medicina de Paris, de Montpellier e de Berlim de antanho, abrigava a sociedade médica mais “raffinée” da cidade da Bahia, e acolhia mestres e alunos, protagonistas de aulas extraordinárias, reunindo-se ali, também, médicos e estudantes participantes de simpósios, além de servir de local para a realização de conferências, exames de tirocínio estudantil, e vestibulares, sendo o lugar das sessões científicas da Sociedade Acadêmica Alfredo Britto e a trincheira dos estudantes de medicina nas suas pugnas cívicas.

            A Congregação, em reunião de 24 de maio de 1909, onze dias após a morte do ínclito e benemérito diretor, deferiu petição de diversos alunos, dando ao grande Anfiteatro o nome de Anfiteatro "Alfredo Britto”.

 

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