HISTÓRIA DA MEDICINA artigo 57

O falecimento do Professor Doutor Raymundo Nina Rodrigues,
em Paris, a 17 de Julho de 1906
e a narrativa da chegada
do cadáver ao porto desta capital, no dia 10 de agosto do mesmo ano.
A exposição minudenciosa das exéquias do célebre cientista brasileiro.

Dr. Antonio Carlos Nogueira Britto
Vice-presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins.
Fundado em 29 de novembro de 1946
Parte VII

Terça-feira, 21 de agosto de 1906 – A viúva do Dr. Raymundo Nina Rodrigues divulgou nas folhas desta capital a seguinte nota de agradecimento:

AGRADECIMENTO

Maria Couto Nina Rodrigues, sua familia e a de seu fallecido esposo, ainda sob o peso da mais intensa dôr, cumprem o doloroso dever de protestar de publico o seu profundo e inolvidavel reconhecimento aos corpos docente, discente e administrativo da Faculdade de Medicina, á Faculdade Livre de Direito, e á Escola Polytechnica, ao exmo. sr. dr. governador do Estado, ás auctoridades superiores, civis e militares, ao Congresso Legislativo e ao Conselho Municipal, á imprensa, e a todas as pessoas, familias e corporações, que se dignaram manifestar-lhes, por qualquer modo, a expressão de suas condolencias, por occasião do terrivel golpe que soffreram, assim como a todos os que assistiram as exequias e acompanharam o feretro desde a sua chegada até ao cemiterio, pedindo permissão para accentuarem a maxima gratidão aos que tomaram de si, com a mais espontanea generosidade, a incumbencia dos funeraes.

Bahia, 20 de agosto de 1906.”

 

Errando amiudadamente em piedosa romagem historiográfica e pesquisadora na região dos finados, no Campo Santo, da Casa da Santa Misericórdia, com o objetivo de também tirar retratos dos mausoléus e sepultura de insignes lentes da Faculdade de Medicina da Bahia, quedei-me, em um domingo do mês de abril do corrente ano de 2006, em comovido silencio, ante o túmulo do Dr. Nina Rodrigues. Ao seu lado, repousava o seu fraterno amigo, colega e concunhado, o diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, o Professor Doutor Alfredo Britto; bem próximo, jazia o lente de Higiene, Dr. Joaquim Matheus dos Santos, (1865-1903), falecido em Berlim; em frente, a sepultura do lente de Clínica Cirúrgica, Dr. Manoel Victorino Pereira, (1853-1902).

Em clima de oração e de profunda reflexão, parecia-me ter sido conduzido para o dia 11 de agosto de 1906, no zênite do sol com o lampejo do seu séqüito de luz, naquele mesmo lugar, no ato do sepultamento do Dr. Raymundo Nina Rodrigues: passos silenciosos; perpassar de fatos e vestidos lutuosos; olhos lacrimosos; algumas senhoras senhorinhas debulhadas em prantos; ciciar de orações; pessoas assoando-se com grandes soluços; cheiro de cemitério estesiano as narinas; alguns circunstantes com acesso de “spleen”. Cismativo, nos meus quiméricos pensamentos, encontrava-me no meio de rosas desfolhadas, ciprestes alevantados e pálidos e esmaecidos mármores no momento da sagração dos sufrágios, que eternizavam a saudade do Dr. Nina Rodrigues.

Ante aquele túmulo, a piedade dos pósteros engrinaldará a memória do extinto com lágrimas e com um terníssimo culto de recordação e veneração. A renovação desse preito pelo grande vulto da Medicina Legal, que a fatalidade veio intercalar uma dolente pagina de luto na história da Medicina, estará sendo efetivada pela celebração do centenário do falecimento do Dr. Nina Rodrigues, oportunidade em que a Bahia e o Brasil avultarão pela História a grandeza dos seus feitos ilustres e dos seus atos memoráveis.

Poder-se-ia concluir esta narrativa, apresentado aligeiradas considerações em derredor dos centenares de trabalhos que compõem a vasta bibliografia do Dr. Nina Rodrigues, desde a sua primeira publicação A morféia em Anajatuba (Maranhão) até os mais preciosos artigos, teses, discursos, pareceres, aulas, escritos em jornais etc.

Achei mais apropriado apresentar inéditos e valiosos manuscritos originais a respeito do infante Nina Rodrigues, que desde a sua puerícia, lá pelas bandas da província do Maranhão, já se aprontava, mediante os estudos preparatorianos, para alçar vôo e se avultar entre os mais celebrados cientistas do seu tempo.

O rapaz Raymundo Nina Rodrigues, 20 anos de idade, embarcou para a cidade da Bahia, a bordo do vapor nacional Bahia, que atracou à terra desta capital no dia 9 de março de 1882, procedente dos portos do Norte. Desembarcaram 79 passageiros, conforme se observa no alentado e assaz ponderoso livro de registro de entrada de passageiros do “Commisariado da Policia do Porto”. Lê-se, no dito livro, o nome Raymundo Nena (sic) Rodrigues, de nacionalidade “brazileira”, procedente do Maranhão. Alguns companheiros de viagem do jovem Nina, registados no referido, serão citados: “D.r Antonio Cruz Cerdeiro, D.r José Lino, D.r Alexandre Gomes Pereira, D.r Orlando Sicupira, Dr Octaviano Loureiro, D.r Affonso Uchoa, D. r Affonso Mendonça, D.r José Garcia Loureiro, Felinto Bastos, (vindo de Pernambuco), Leopoldo (escravo), Eliza e 1 menor (liberto), João, Antão e Antonia (criados)”.

Os passageiros sobreditos, além dos demais não mencionados, vieram do “Maranhão, Ceará, Natal, Parahyba, Pernambuco e Maceió.”

Entraram no Porto da Bahia, em 9 de março de 1882, além do vapor Bahia que transportou o moço Nina, as seguintes embarcações transportando viajantes: Os navios “Hiate” e “Trez Irmãos”, procedentes de Estância e o “paquebot” francês “Niger”, procedente de Bordeaux por escalas.

Chegando à cidade da Bahia no dia 9 de março, o dinâmico e aplicado estudante Raymundo Nina Rodrigues dirigiu-se o mais cedo possível até a Faculdade de Medicina da Bahia, sobraçando seus preciosos documentos, a seguir minuciosamente apreciados, para efetivar a tão desejada matrícula naquela Escola, levada a efeito no dia 10 daquele mês.

Por conseguinte, está anexada a este trabalho cópia por “scanner” do documento manuscrito original do instrumento dado em pública forma, em Vargem Grande, província do Maranhão, aos quatorze de junho de 1876, no qual está exarado o assentamento do batizado do “innocente” Raymundo, conforme se lê: “Instrumento dado e passado em publica forma do officio de mim tabelião com o theor de que abaixo se de clara

Saibão os que este publico instrumento de publica forma virem que no Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jezus Christo de mil oito centos setenta e seis, aos quatorze dias do mês de Junho do dito anno, em meu escriptorio, nesta Villa de Vargem grande, compareceu o Alferes Martiniano Andrade e me aprezentou uma certidão passada pelo Padre Raymundo José Lecont da Fonseca, requerendo-me que desse-lh-á em publica forma, ao que saptisfasendo recebi a dita certidão e dou, cujo theor é o seguinte: Raymundo José Lecort da Fonseca Presbytero Secular e vigario Collado na Freguesia de São Sebastião do Iguará. Certifico que hoje, na Fazenda Santa Severa baptisei solemnemente e pus os Santos oleos ao innocente Raymundo nascido a quatro de Dezembro de mil oito centos e sessenta e dois, filho legitimo de Francisco Solano Rodrigues e Dona Luiza Rosa Ferreira Nina e forão padrinhos Antonio José Maya, reprezentado pelo Tenente Raymundo Alves de Abreu e Dona Rosa Bernardina Ferreira Nina. Santa Sevéra doze de Dezembro de mil oito centos sessenta etres. Padre Raymundo José Lecont da Fonseca. Via-se uma estampilha do valor de duzentos reis devidamente inutilisada da maneira seguinte: Vargem grande quatorze de Junho de mil oito centos setenta e seis. Otabelião Marianno José de Mello. Está conforme e reporto-me ao original que devolvi a parte. Eu Marianno José de Mello, tabelião que a transcrevi e assigno em publico e raso.

Em testemunho da verdade
Otabelião
Marianno José de Mello”

“Instrumento
2”000
Rasa
“760”
   
“R. ce do Alferes Andrade
 
Rubrica: Mello”

À margem esquerda do documento está consignado: “Reconheci as por similhante que tenho visto (a assignatura do tabelliam Marianno José de Mello./ OEscr.m/ Rubrica Ilegível.”

Ao lado, na dita margem, está uma estampilha verde de 200 reis, com a efígie de D. Pedro II e escrito sobre o selo referido: “Vargem grande 14 de Junho a 18 (ilegível) / tabelião
Marianno José de Mello”.

Outro documento manuscrito, original e inédito, reproduzido por “scanner”:

“Francisco Joaquim Ferreira Nina, Doutor em Medicina pela Faculdade da Bahia

Attesto que o Sr. Raimundo Nina Rodrigues foi vaccinado há tres annos mais ou menos – Maranhão, 1 de Março de 1882”

Estampilha com a efígie de D. Pedro II, no valor de 200 reis, sobre a qual está a data e rubrica do médico Dr F. J. Ferr.ª Nina.

“Reconheço a assignatura supra
Maranhão 1.ª de Março de 1882
Em test da verd.e
O Tab.am Fabio Gomes Francisco de Mattos”

Dez (10) reproduções por “scanner” de documentos manuscritos originais e inéditos referentes ao certificado de aprovação em “Exames Geraes”, emitido pela “Secretaria da Delegacia especial da Inspectoria Geral da Instrucçção Publica da Côrte em Maranhão”, assinado pelo secretário Antonio Aniceto de Azevedo, com datas de 13 e 14 de fevereiro de 1882.

Os sobreditos certificados atestavam que o alumno Raymundo Nina Rodrigues fez os seguintes exames: “Portuguez”, “em dezoito de Julho de 1879 e foi approvado plenamente”; “Francez”, “em sete de Novembro de 1879 e foi approvado plenamente com distincção.”; “Geographia”, em vinte e dous de Julho de 1880 e foi approvado plenamente com distincção.”; “Arithmetica”, em desesete de Novembro de 1880 e foi approvado plenamente com distincção”; “Inglez”, em vinte e seis de Novembro de 1880 e foi approvado plenamente com distincção.”; “Latim”, em vinte e cinco de Julho de 1881 e foi approvado plenamente”; “Álgebra”, em tres de Agosto de 1881 e foi approvado plenamente”. “Geometria”, em dez de Agosto de 1881 e foi approvado plenamente com distincção”; “Historia”, em vinte de Dezembro de 1881 e foi approvado plenamente com distincção”; “Philosophia”, em vinte e quatro de Dezembro de 1881 e foi approvado plenamente”.

Manuscrito original e inédito, reproduzido por “scanner”, relativo à petição do moço Raymundo Nina Rodrigues, com data da Bahia, a 10 de Março de 1882, dirigida ao diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, requerendo que seja matriculado na primeira série do curso medico: “Illm.º e Ex.mo Snr. Cons. Dr. Director da Faculdade de Medicina da Bahia.

Raymundo Nina Rodrigues, achando-se habilitado para freqüentar as aulas da primeira serie do curso medico, como prova com os documentos juntos, requer a V. Ex.ª que se digne mandar matriculal-o nas referidas aulas, pelo que

E. R. M.ce
Bahia 10 de Março de 1882
Raymundo Nina Rodrigues.”

No frontispício da petição estava lavrado: “Matriculado Bª 15 de M.co 1882
                                                                    Rodrigues”

E, finalmente, o último documento original e inédito, também reproduzido por “scanner”:

“308
RECEBEDORIA / (brazão do Império) / DA BAHIA

MATRICULA DA FACULDADE DE MEDICINA
n.º 808
EXERCICIO DE 188 Á 188

REIS 51$200

A F. 28 do Livro 45 de Receita fica lançada em debito ao actual Thesoureiro Maximiano dos Santos Marques a quantia de cincoenta e um mil e duzentos reis que pagou Raymundo Nina Rodrigues da 1.ª prestação de sua matricula na 1.ª serie do curso medico.
Recebedoria da Bahia, 10 de Março de 1882
Pelo Thesoureiro, (rubrica ilegível) / O Ajudante, Catão Pereira de Mesquita.”

Concluída a presente exposição, e depois de conhecer mais um pouco a respeito da biografia e os trabalhos do cientista Dr. Nina Rodrigues, creio firmemente que o afamado lente de Medicina Legal, através do seu vigor do espírito e a força do gênio, do talento e dos méritos, dos seus préstimos e serviços, poderia estar intimamente associado, 68 anos mais tarde, ao pensamento de André Malraux, em Lazare, em 1974, quando enunciou: “... je cherche la région cruciale de l’âme, où le Mal absolu s’oppose à la fraternité.”

Quanto a mim, acrescentaria, como palavras do fim, parafraseando a manifestação de Horácio, ao dizer em Odes. III, 30, 6, apropriadamente aplicada à vida prestante do Dr. Nina Rodrigues: “Non Omnis Moriar”, isto é, “Não morrerei de todo: parte da minha obra há de sobreviver-me.”

 

FONTES CONSULTADAS:

PRIMÁRIAS E IMPRESSAS

Biblioteca Central do Estado da Bahia
Seção de periódicos raros

Diario da Bahia, 5 de maio de 1906; 8 de maio de 1906; 9 de agosto de 1906; 10 de agosto de 1906; 11 de agosto de 1906; 12 de agosto de 1906; 21 de agosto de 1906.

Jornal de Noticias, 5 de maio de 1906; 18 de julho de 1906; 8 de agosto de 1906; 10 de agosto de 1906; 11 de agosto de 1906; 13 de agosto de 1906;

Diario da Noticias, 25 de maio de 1906.

Jornal da Bahia, 4 de maio de 1906.

 

FONTES PRIMÁRIAS E MANUSCRITAS

Faculdade de Medicina da Bahia, ao Terreiro de Jesus, da Universidade Federal da Bahia
Arquivo e Biblioteca do Memorial da Medicina Brasileira

Livro de atas das sessões da Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia – Ano 1906: Sessão da Congregação em 28 de abril; sessão em 18 de julho; sessão em 25 de julho; sessão em 20 de setembro.

Maço contendo os documentos exigidos para a matrícula do preparatoriano Raymundo Nina Rodrigues, em 10 de março de 1882, na 1.ª série do curso médico da Faculdade de Medicina da Bahia.

“Livro de Avisos e Telegrammas:
Repartição Geral dos Telegraphos.”
Avisos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores.

 

FONTE PRIMÁRIA IMPRESSA

Biblioteca particular do A.

Rebello GP. Oração proferida pelo Dr. Guilherme Pereira Rebello junto ao túmulo do Dr. Nina Rodrigues. Revista dos Cursos da Faculdade de Medicina da Bahia. Typ. Bahiana, de Cincinato Melchiades: – Bahia, p.282-288, 1906.

 

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA
FONTE PRIMÁRIA MANUSCRITA INÉDITA

Seção Republicano
“Commissariado” de Policia do Porto. Livro de Entrada de Passageiros. Livro n.º 03; data: 9 de março de 1882.
“Commissariado” de Policia do Porto. Livro de Entrada de Passageiros. Livro nº 10; data: 10 de agosto de 1906.

Seção Judiciária
Inventário – Dr. Raymundo Nina Rodrigues
Período: 1906/1916. Folhas 41.
Classificação: 01/58/68/65
Advogado: Dr. Antonio Carneiro da Rocha.
D. Maria Couto Nina Rodrigues (viúva) – Inventariante e herdeira, com a filha Alice

 
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