HISTÓRIA DA MEDICINA artigo 57

O falecimento do Professor Doutor Raymundo Nina Rodrigues,
em Paris, a 17 de Julho de 1906
e a narrativa da chegada
do cadáver ao porto desta capital, no dia 10 de agosto do mesmo ano.
A exposição minudenciosa das exéquias do célebre cientista brasileiro.

Dr. Antonio Carlos Nogueira Britto
Vice-presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins.
Fundado em 29 de novembro de 1946
Parte VI

Em seguida, o Dr. Guilherme Pereira Rebello, preclaro sergipano, catedrático da Faculdade de Medicina da Bahia, recitou emocionante panegírico, que toldou de lagrimas sentidas os olhos daqueles que permaneciam silenciosos e juntos ao ataúde do pranteado Dr. Nina Rodrigues.

A oração, tão bela e erudita quanto alentada, impregnou de subida espiritualidade o coração das pessoas presentes, quando, no discurso pleno de encômio e de saudade, o celebre orador disse: “Debalde se agitariam aqui, perante um tumulo aberto, os problemas eternos do Ser ou não ser; em vão se buscaria a solução dessa duvida, que tem attribulado os philosofos e verteu a amargura no espirito angustiado do merencorio principe da Dinamarca. Em vão. Debatem-se as hypotheses, contendem os systemas, collidem as escolas, aguça-se a mente do homem, mergulha o pensador, audaz e resoluto, nos intricados meandros desse oceano profundo e insondável que é o mundo da intelligencia, e o problema se mantém, austero e mysterioso, esphinge temerosa em frente ao pensamento. A verdade, porém, desde logo surge em sua face insophismavel, como sae fora a philosofia da dor o estagio necessario de toda philosophia: – eil-o aqui, Senhores, inerte e gelido, na rigidez marmorea da morte, parado o grande coração, que tanto amou, cerrados os olhos, rasgados e bons, onde se espelhavam a intelligencia e a doçura, e apagado o cerebro forte, o laboratorio potente, cheio sempre da preocupação da sciencia e onde tinha o talento as suas mais fulgidas scintillações.

Foi em certa manhã triste e sombria que se partiu elle desta terra; alquebrado o corpo, exausto o seu vigor nas puas de insidioso morbo, mas lucido e forte o formoso espirito, pleno de nobres estimulos, de largas aspirações, como se enganosa perspectiva lhe emprestasse forças, irisando-lhe de esperanças o coração confiante.

E elle era, o nosso mallogrado collega, um espirito forte, um tenaz no labor e na lucta. Attesta-o sua obra, fecunda e vasta. Ao lado dos primeiros estudos da pathologia indigena, testemunho já honroso de uma faculdade poderosa de trabalho, servida por notavel descortino intellectual, brilham de vivissima luz os estudos eruditos na cathedra que honrou, premiados na sagração respeitosa dos centros mais elevados da cultura medica, e nos quaes perpassa, em grande parte, com a erudição, que mais e mais se affirma, um sopro de piedade, um contingente valioso á bella e humanitaria concepção lombrosiana do Uomo delinquente, um nobre e generoso em prol das raças inferiores, um protesto vibrante e convencido contra a inflexibilidade antinatural e antiscientifica dos moldes penaes ante a diversidade de raças, de temperamento e de meio cosmico, um grito de dó pelos pobres insanos, e, em meio a tudo, um generoso e esforçado impulso, tenaz e continuo, pelo levantamento da medicina publica em nosso paiz, neste proprio estado.

Se uma vista de conjuncto dessa obra ha de reconhecer e applaudir a orientação firme e segura, o vigor do scientista e o ardor da propaganda, lhe não pode recusar a justiça da critica, além de outros, o titulo, sobre todos honroso, de creador da anthropologia criminal brasileira, com que acaba de laureal-o emerito confrade da Faculdade do Rio.

A outros, porém, e mais de espaço, o perfil minudente do scientista. Combalido ainda, prestes quase a precedel-o de perto na romagem mysteriosa do Além, pude ainda viver, para, neste momento angustioso, trazer-te, saudoso amigo, o adeus supremo de teus collegas, a expressão dolorida de sua admiração e de sua saudade.

Quantas aspirações, Senhores, quantas, alevantadas e altruisticas, lhe não povoaram o espirito! - Era a França, a antiga metropole tradicional da civilisação e da intelligencia, mal deposta ainda de seu primitivo esplendor; a França, com seus institutos seculares, em cujo ambito parece vibrar até hoje a voz abalisada de Orfila, de Broca, de Claude Bernard, de Charcot, de Pasteur, de Brouardel; - era a Germania, era a Austria, centros luminosos e intensissimos de cultura scientifica, com suas admiraveis officinas de ensino medico, cheias ainda dos echos pserduraveis de Virchow, de Rindfleisch, de Rokitansky; era a Italia, - Milão, Roma, - a Italia maravilhosa, solenne nas suas ruinas, gracil e encantadora nas linhas artisticas de seus monumentos, nos fustes de suas columnas, nos fulcros de seus zimborios, austera e grave na grandeza epica de seus vulcões; a Italia, nomeadamente, que parece querer focalisar os progrssos surprehendentes da anthropologia criminal, ao influxo forte de Lombroso, de Garofolo e Ferri.

Que mundo de emoções, gratas e suggestivas, lhe estava reservado nessas colmeias humanas, nesses centros de trabalho e de estudo, ao contemplar de perto, embevecido, as conquistas assombrosas da sciencia, as mirificas manifestações do senso esthetico nas letras e nas artes, e, especialmente, o avanço triumphal da bella e humanitaria sciencia que fora a ultima paixão de seu espirito!

Acode á mente entristecida a enormidade da perda desse material vastissimo e precioso, que soffregos esperavamos, a desentranhar-se mais tarde em proficuas applicações em pró da sciencia e do ensino, em quadros fieis, sentidos e vividos no proprio scenario de sua origem, quadros á Barthelemy, nos quaes se reflectissem, em traços firmes e seguros, naquelle estylo vigoroso e correntio, que tão bem lhe moldurava o pensamento, a vida intellectual e os progressos da sciencia nos varios centos de alem-mar.

Não o quis, porém, o máo fado de nossa Faculdade e, recusando-nos o bem que anceavamos, nos manda a fluctuar sobre o dorso das ondas, em funebre jornada de paragem longinqua, não desejado escrinio alviçareiro, o thesouro inestimavel das novas acquisições, haurido na observação reflectida e intelligente, mas est’outro escrinio, triste e desconfortante, a urna funeraria que vae baixar lugubremente ao seio profundo da terra, ás retortas reductoras desse laboratorio immenso e mysterioso.

Pungente ironia, digna somente da penna elegiaca de Klopstock ou de Mistress Barbauld!

E nós o recebemos, e vós o recebestes, mocidade de minha Patria, com o mesmo recolhimento e o mesmo orgulho com que outrora, em frente ao sumptuoso cortejo que acompanhava á França os restos repatriados do prisioneiro heroico de Santa Helena, “o meteoro que cahiu e se afundou numa ilha do Atlantico”, respondia o rei ao principe de Joinville nesta só phrase, admiravelmente expressiva e de uma eloquencia concisa e sublime: “Eu os recebo, Senhor, - em nome da França”.

É, por nossa vez, em nome da Patria, Senhores, que aqui estamos nós. Sim: não é a Patria somente a porção de gleba onde respiramos o primeiro atomo de oxygenio e se nos dilatou o peito no primeiro grito de dôr; não é tão só a arvore umbrosa sob cujos ramos, num desses poentes de nosso céo tropical, cheios de effluvios saudosos e doces scismares, nos estremeceu o coração juvenil no alvoroço do primeiro idylio; não é tão pouco a recamara estreita, mas povoada de sonhos, onde, soltandos as azas á imaginação, nos raiou n’alma a aurora phantastica da esperança; não é ainda a torre branca da ermida, em cujas aras, como no sonho bíblico, nos elevamos ao céo nos degráos dessa escada luminosa que é a prece; não é, por fim, o campo sagrado a cujas lapides nos prende, nos laços da saudade, a lembrança carinhosa dos que foram pedaços do nosso ser. É mais do que isso a Patria; é a concretisação das energias vivas do talento, das aspirações, da coragem, do carinho, das lendas, da historia; é esse parimonio moral, sublime e inegualavel, que todos zelam e cultuam com o fervor dos crentes, com a calma refectida e firme dos velhos ou os arroubos enthusiasticos da juventude. Sim, a Patria é isto e, mais que tudo, acima de tudo, a intelligencia, a esperança, o ardor; a Patria é a mocidade!

Por isso é que, como na França de 1840, recebemos nós estes restos, num momento solenne de reconhecimento e uncção – em nome da Patria, da grande Patria Brasileira.

Mas a morte não anniquila, Senhores. Na vasta obra de professor erudito, nas paginas esculpturaes de sua penna amestrada, no ensinamento fecundo da cathedra, palpita de vida intensa e brilho inapagavel a alma inteira do scientista e sempre se sentirá a rija envergadura daquelle espirito alevantado e audaz. Superior á contingencia da materia, não morrerá sua obra, e os quatro muros desse ergastulo a que o acorrentaram – novo Caucaso de um outro Prometheu – se dilatam, por maravilhosa transformação, no magestoso portico por onde entram os immortaes.

Nem mesmo a argilla que nos envolve a morte anniquila. Mentem os livros sagrados da India legendaria, pondo em face de um Deus creador um Deus destruidor, - minotauro insaciavel, para quem na phrase de Quinet, seccam as folhas, a juventude se faz velhice, tudo desaparece e morre. Não, não ha destruição; a morte não destreoe, transforma. Quando, afinal, nos processos fataes e admiraveis da alchimia subterranea, se desligarem as moleculas que foram a ambula luminosa daquelle grande espirito, entrarão de novo na circulação universal e desse proprio cadaver saltarão victoriosas, numa explosão triumphante de vida e de belleza, as corollas polychromicas que esmaltam e perfumam as veigas e as collinas. Então veremos em toda parte o grande amigo, materialisado de novo, nas finas ondulações do ether imponderavel, nas vibrações luminosas que nos ferem a retina, na planta germinante, no iris da corolla, no perfume da flôr. Teremos sempre ante nós uma particula ao menos de seu corpo, a transformação – quem sabe? – de uma molecula evadida de seu coração ou de seu cerebro. Sim, a morte não destroe; o tumulo é um Thabor.

E quando no espaço estalar bruscamente o uivo da tormenta e riscas sinistras fulgirem subito no horizonte ennegrecido e, loucos, espavoridos, se contorcerem doidamente os ramos do cypreste na furia do vendaval e parecer que os proprios tumulos se agitam em convulsões epilepticas de uma dansa macabra, - vir-nos-ão á lembrança as procellas de sua alma, apaixonada pelo bem, na qual rugiam ás vezes imprecações terriveis, na lucta destemida pela verdade e pela justiça, a fustigar os erros com o latego vingador com que foram expulsos os mercadores do templo, a fulminar, terrivel e sublime, em explosões de colera sagrada, o preconceito, o erro, o emperramento, a rotina.

Mas nas noites enluaradas, quando parecer que dorme a propria alma das cousas e sobre o grande silencio da necropole se derramar da amphora celeste, em tenuissima poeira de prata, essa claridade bôa e doce, feita de nostalgias, que a tudo envolve, como se fora a ternura de um olhar meigo e dolente, corado pelo azul infinito com a doçura de uma caricia, e na frança do arvoredo, agitado de manso, murmurar meigamente a surdina dos beijos, - então nos parecerá sentir a doçura infinita de sua alma bôa, ingenua e serena como a dos justos, illuminada pela limpidez crystallina da consciencia, e ouvir um pouco desses ruidos mysteriosos, dessas vozes interiores, dulcidas e empolgantes, que nos cantam dentro d’alma e segredam no coração do homem as impulsões do bem.

Lá, saudoso confrade, lá, onde se te abriram os olhos ao primeiro banho de luz, na terra decantada dos viridentes palmares, em cuja fronde tremula aves do céo fazem ninhos, rufam azas palpitantes e chilra, pelas alvoradas alegres e nos crepusculos melancolicos, a sonata nostalgica de aligeros menestreis, querula e triste como um psalmo de David, - lá, onde o vazio enorme no coração dos teus é amphora minuscula para as lagrimas amarissimas que o assoberbam, quando um dia fender o espaço, na accentuação arrojada de suas linhas, o bloco de marmore sobre o qual se erguerão mais uma vez a honra e o orgulho da terra lendaria de Gonçalves Dias, de João Lisbôa e Odorico Mendes, já terás aqui, nesta alma parens da lealdade e do amor, um moimento mais que todos expressivos: a lembrança viva de tua obra, os echos que ainda repercutem a tua voz no vasto recinto do nosso templo da Sciencia e Caridade, a memoria agradecida dos beneficios que derramaste e, em dignificante remate, a legenda de teu nome, como labaro de combate, na propria tenda cujas ameias já se apresentavam para scenario de novas glorias, ao influxo irreprimível de tua paixão do trabalho.

E se, ao gladio devastador de algum genio máo, houvessem de ruir lá, no mesto ninho saudoso de tua infancia, o marmore e o bronze erguidos á tua memoria, o monumento que já tens aqui neste recanto de terra abençoado, irmão do teu na louçania ridente e incomparavel de suas veigas e de suas encostas e na emotividade profunda de seu povo, e, como elle, ninho alcandorado de aguias atrevidas, o moimento que já se ergueu na intelligencia e no coração desta terra legendaria de Manoel Victorino e Ruy Barbosa, “verde ninho murmuroso de eterna poesia, debruçado entre as ondas e os astros”, - esse a tudo resistiria impavido e firme, no largo pedestal augusto dos corações que te amaram, erecto e intrangivel, mais rijo que o marmore, mais perenne ainda que o proprio bronze.”

Concluído o panegírico, escutado no mais profundo silêncio, os acadêmicos das três escolas superiores retiraram o esquife da urna e o colocaram na sepultura, sendo sobre ele depositadas muitas flores e capelas. Em seguida, a sepultura foi coberta por uma grande lápide de mármore.

 
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