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MONITORIA
Discussão Anatomo-Clínica
GLICOGENOSE

Laudenor P. Lemos-Júnior*
 
IDENTIFICAÇÃO: J.M.B.S., sexo masculino, 6 anos, natural e procedente de Barra Grande – BA.

Q.P.: Aumento de volume abdominal há cerca de 5 anos.

H.M.A: Mãe informa percepção de aumento no volume abdominal há cerca de 5 anos durante o curso de febre culminada em episódio convulsivo. A este tempo, foi realizada USG abdominal,sugerindo hepatomegalia inicial. Seguiu por pouco menos de três anos com aumento paulatino do volume abdominal associado a colúria, hipocolia fecal e episódios esporádicos de epistaxe.

Foi encaminhado para o ambulatório de hepatologia (FAMEB) a partir de Barra Grande – BA, seguindo acompanhamento por 1 ano, com os mesmos sintomas, acrescido história de eventos hipoglicêmicos alternantes com eventos hiperglicêmicos (sem mais informações). Solicitada biópsia hepática há 2 anos, sugerindo glicogenose (excluido tipo IV ?).

Mãe suspendeu tratamento há um ano, retornando no presente momento ao serviço por piora do quadro geral. Seguiu à internação por 2 dias para a realização de USG Abdominal, TC de Abdome, Laparotomia Exploradora e Biópsia Hepática e onde fez uso de medicação sintomática.

I.S: Negou febre e icterícia.

ANT. FISIOLÓGICOS: Pré-natal completo com todas as consultas, sem complicações. PNSV sem intercorrências, pesando 4400g.

ANT. PATOLÓGICOS: Varicela resolvida há 3 anos.

ANT. FAMILIARES: Hipercolesterolemia; HAS em avó materna.

COBERTURA VACINAL: Cartão vacinal completo.

CONDIÇÕES SÓCIO-ECONÔMICAS: Dificuldade financeira para vir até Salvador

HABITAÇÃO: Casa rebocada; nunca viu barbeiro.

HÁBITOS DE VIDA: Banhos freqüentes em rios e locais de água parada.

EXAME FÍSICO Á INTERNAÇÃO

Mucosas hipocoradas (++/IV); presença de equimoses em membros inferiores e superiores.
PA: 110 X 70 mmHg, T: 37Cº Peso: 20Kg, Altura: 1,24m IMC: 30 Kg/m2

AR: MVBD sem RA, som claro pulmonar;

ACV: Bulhas rítmicas, normofonéticas, em 2 tempos, sem sopros;

ABD: Globoso, flácido, pouco tecido subcutâneo, timpanismo difuso. Traube livre, baço não palpável. Fígado pálpavel a 4 cm do RCD, com borda romba, de consistência elástico-resistente, indolor.

RESULTADOS DE PROVAS DIAGNÓSTICAS À INTERNAÇÃO

Glicemia: 117 mg/dl
TGP: 339 U/l (3-50 U/l)
TGO: 415 U/l (12-46 U/l)
Triglicérides: 566 mg/dl
Anemia microcítica (++/IV)
  hipocrômica (++/IV)
Neutropenia discreta (?)
USG: sugestivo de hepatomegalia comprometimento crônico e linfonodomegalia em hilo hepático.
TC: confirmou a USG.
Laparotomia Exploradora: sem linfondomegalia; crescimento de lado quadrado em direção ao hilo.
Biópsia Hepática: Glicogenose

SUSPEITAS DIAGNÓSTICAS

1) Glicogenose hepática?
2) Esquistossomose?
3) Hepatopatia crônica? Viral?

BIÓPSIA DE FÍGADO (06/10/2003):

Figura 1: Médio aumento. Hepatócitos normais.
Figura 2: Médio aumento. Hepatócitos com citoplasma claro.
Figura 3: Grande aumento. Hepatócitos com citoplasma claro, característicos do acúmulo de glicogênio.
Figura 4: Grande aumento. Idem.
Figura 5: Grande aumento. Material PAS (+) dentro dos hepatócitos.
Figura 6: Grande aumento. Material PAS com digestão por diastase.
Figura 7: Médio aumento. Espaço porta normal.
Figura 8: Médio aumento. Impregnação pela Prata para fibras reticulínicas com septos fibrosos completos e incompletos (evolução para cirrose).
Figura 9: Médio aumento. Idem.
Figura 10: Médio aumento. Idem.

RESUMO DA HISTÓRIA CLÍNICA: Trata-se de um paciente do sexo masculino, 6 anos, vítima de doença de armazenamento do glicogênio, cursando com quadro clássico de hepatomegalia, desde de ao menos 1 ano de idade. Há história de eventos hipo- e hiperglicêmicos alternantes e, porteriormente, hipocolia fecal, colúria e epistaxes. Foi detectado estado anêmico com neutropenia há última internação, juntamente com hipertrigliceridemia e transaminases elevadas. Negou febre e icterícia. O fígado é pálpavel a 4cm do RCD e indolor, sem esplenomegalia. USG e TC indicando hepatomegalia; biópsia hepática confirmando glicogenose.

REVISÃO DA LITERATURA: As doenças de depósito do gligogênio (ou glicogenoses) são de cunho hereditário e causadas por anormalidade na síntese ou degradação do gligogênio (1). As concentrações de glicogênio >70mg/g, em tecido hepático, e / ou >15mg/g, em tecido muscular, caracterizam a glicogenose (2). Nos últimos tempos, os pacientes têm sido identificados pelos defeitos enzimáticos específicos, o que traz para nós hoje a caracterização de cada uma das formas da glicogenose, desde de que se identifique qual enzima está ausente ou insuficiente e se atente aos critérios clínicos particulares, como está na tabela 1 (2).

TABELA 1 - Classificação da glicogenoses (alguns tipos) (2)
TIPO ENZIMA AFETADA ÓRGÃO PRIMÁRIO MANIFESTAÇÕES
0 Glicogênio Sintetase Fígado Hipoglicemia, hipercetonia, morte precoce
Ia Glicose-6-Fosfatase Fígado Hepatomegalia, crescimento renal insuficiente, hipoglicemia de jejum, acidose, trombocitose
Ib G-6-P Translocase Microssomal
Fígado Vide Ia; Neutropenia recorrente, infeccções bacterianas
Ic Transportador de Membrana Fígado Vide Ia
II Glicosidase Ácida Lisossomal Músculo Infantil: início precoce, hipotonia muscular progressiva, insuf. Cardíaca, morte < 2 anos
Juvenil: miopatia de início tardio, envolvimento cardíaco
Adulto: distrofia muscular
III Amilo-1,6-Glicosidase Fígado, músculo Hipoglicemia de jejum, hepatomegalia na infância; alguns com miopatias, raramente características cardíacas
IV Amilo-1,4-1,6-Glicosidase Fígado, músculo Esplenomegalia, cirrose; pode haver início tardio de miopatia
V Fosforilase Muscular Músculo esquelético Dor muscular induzida por exercício, cãibras e fraqueza progressiva
VI Fosforilase Hepática Fígado Hepatomegalia, hipoglicemia discreta, bom prognóstico
VII Fosfofrutocinase Músculo, hemácias Vide V; alguns com anemia hemolítica discreta
      Adaptado de “Cecil Textbook of Medicine”, 22th edition, 2004

O glicogênio assume especial importância no estoque de glicose, sendo o responsável direto pela manutenção dos níveis estabilidados da glicemia de jejum, sendo o fígado o principal órgão de armazenamento, síntese e degradação (3). Pelo fato de dependermos da glicose vinda da dieta, é fácil presumir o quanto está susceptível a variações os pacientes com glicogenose (clique aqui para ver Figura 1) (1,2,3).

Dentre os achados mais comuns estão, nestes grupos de pacientes, a hipoglicemia alternante com picos hiperglicêmicos, a hipertrigliceridemia, hiperlacticacidemia, transaminases elevadas e a hepatomegalia (1,3). Um aspecto relevante é que, dentre os problemas decorrentes do metabolismo indequado do glicogênio, encontramos a possibilidade de formação de moléculas de glicogênio anormais, as quais são resultado da deficiência em um dos três tipos enzimáticos: Enzimas Ramificadoras, Glicogênio Sintetase ou Enzimas Desramificadoras (2,3). A implicação prática está na maior associação da glicogenose com evolução para cirrose e / ou esplenomegalia (2).

Dentre as complicações tadias destes pacientes estão:

Maior incidência de adenomas hepáticos (múltiplos ou não) na faixa de 16-22 anos;
Glomerulosclerose com insuficiência renal;
Proteinúria;
Hipertensão arterial e;
Efeitos da Hipertrigliceridemia.

O diagnóstico final é dado pela biópsia, ainda que a sintomatologia e a evolução sejam pilares fundamentais (1,2.3.4). A determinação dos componentes séricos envolvidos na patologia assume papel indispensável, embora a sua associação com a clínica não produza sensibilidade muito alta (2,4).

O tratamento principal e fundamental consiste no controle dos níveis de glicemia com medidas não-farmacológicas (1,2). A intervenção cirúrgica (transplante) é indicada apenas para os pacientes com insuficiência hepática (1,2).

BIBLIOGRAFIA:

  1. Wolfsdor JI & Weinstein DA. Glycogen Storage Diseases. Reviews in Endocrine & Metabolic Disorders. 2003; 4: 95-102.
  2. Greene HL. Glycogen Storage Diseases. In: Goldman L & Ausiello D. Cecil Textbook of Medicine. 22th edition. 2004. p1270-2.
  3. Coltran RS, Kumar V, Collins T. Patologia Estrutural e Funcional. 6a. Edição, 143-144.
  4. Palmer KR. Hepatomegalia In: Bouchier IAD, Ellis H, Fleming PR. French´s Diagnóstico Diferencial em Clínica Médica. 13a. Edição. Rio de Janeiro, Ed. Medsi, 2002, p341-348.

*Monitor e aluno do curso médico da Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia, cursando o 6º semestre.

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Prof. Luciano Espinheira Fonseca Júnior, Professor-adjunto e coordenador de MED-216
Laudenor P. Lemos-Júnior, aluno do 4º ano e monitor da MED-216