HISTÓRIA DA MEDICINA artigo 57

O falecimento do Professor Doutor Raymundo Nina Rodrigues,
em Paris, a 17 de Julho de 1906
e a narrativa da chegada
do cadáver ao porto desta capital, no dia 10 de agosto do mesmo ano.
A exposição minudenciosa das exéquias do célebre cientista brasileiro.

Dr. Antonio Carlos Nogueira Britto
Vice-presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins.
Fundado em 29 de novembro de 1946
Parte II


Quarta-feira, 18 de julho de 1906
– Cidade da Bahia, Brasil.

O edifício da Faculdade de Medicina da Bahia, ao Terreiro de Jesus, amanheceu coberto de uma tristeza infinita que enchia todos os seus pavilhões e que entrava na alma dos membros do corpo docente, discente e administrativo daquela casa de ensino das ciências médicas, que há um ano foi golpeada pela fúria de catastrófico incêndio. Uma angústia pesada e funérea latejava os corações de todos.

Naquele dia congregou-se a Faculdade de Medicina, tendo sido lavrada no respectivo livro a ata da sessão, cujos termos estavam assim exarados: “Acta da sessão da Congregação em 18 de Julho de 1906.

Aos dezoito dias do mez de Julho do anno de mil novecentos e seis reuniu-se as 10 horas o corpo docente da Faculdade de Medicina da Bahia sob a presidencia do snr’. director, o Dr. Alfredo Britto, ...

No meio do mais profundo silencio, o Dr. Alfredo Britto, grandemente emocionado, communicou á Congregação o fallecimento em Paris, hontem, ás 7 horas da manhã, do lente cathedratico de Medicina Legal o Dr. Raymundo Nina Rodrigues.

Pediu, então, a palavra o Dr. Pacifico Pereira, que salientou os serviços prestados pelo illustre morto, lamentando, em palavras commovedoras, a desgraça que todos lastimavam e concluiu propondo que se inserisse na acta um voto do mais profundo pezar e, em seguida, se suspendesse a sessão.

Falou depois o Dr. Climerio de Oliveira, apoiando a proposta do seu antecessor. Os Drs. Anselmo da Fonseca, Braulio Pereira e Manuel de Araujo, apresentaram as seguintes moções, que foram, todas, unanimemente approvadas.

“Proponho que, na acta da sessão de hoje, se exare a expressão de profundo pezar d’esta Congregação pelo prematuro fallecimento do illustre professor de Medicina Legal Dr. Raymundo Nina Rodrigues, o qual, pela elevação dos talentos, pelo decidido amor e dedicação á sciencia pela fecunda actividade de espirito, pelos serviços prestados a este estabelecimento e ao ensino, deve ser considerado na altura dos mais distinctos e notaveis professores que hão tido n’esta Faculdade. S. R. – Bahia e Faculdade de Medicina, 18 de Julho de 1906 – Dr. L. Anselmo da Fonseca.”
“Proponho que:
1.º Seja inserido na acta da presente sessão um voto de profundo pezar por tão sensível perda para a sciencia, para a patria e para a humanidade.
2.º Seja passado um telegramma de condolencias á familia.
3.º Tome a Congregação lucto por 8 dias e nomeie uma commisão para apresentar pezames aos seus representantes, aqui residentes.
4.ºSeja denominado “Instituto Nina Rodrigues” o novo pavilhão destinado á Medicina Legal.
5.ºSeja suspensa a presente sessão em demonstração de dor por tão infausto acontecimento.
Bahia 18 de Julho de 1916.
O professor Dr. F. Braulio Pereira.”

“Proponho que: seja consignado na acta da sessão de hoje o voto do mais sincero pezar pelo fallecimento do emerito collega Dr. Raymundo Nina Rodrigues; que sejam suspensos os trabalhos da mesma sessão em homenagem á saudosa memoria do fallecido; que a Congregação e bem assim seus auxiliares e o corpo administrativo tomem lucto por 8 dias; que seja nomeada uma commissão de 5 collegas, para apresentar ás ex.mas viuva e filha do pranteado, quando do regresso da Europa, as nossas condolencias por tão infeliz acontecimento.”

A Congregação elegeu os Drs. Braz H. do Amaral, Braulio Pereira, Garcez Froes, Josino Cotias e Guilherme Rebello para comporem a comissão de que tractam as propostas.

Em seguida foi levantada a sessão.
Approvada em sessão de 25 de Julho de 1906. Dr. Alfredo Britto.”

A mocidade acadêmica da Bahia telegrafou ao ministro da Justiça e Negócios Interiores, Felix Gaspar, solicitando recursos para trazer o cadáver do Dr. Nina Rodrigues para o Brasil. Aquela autoridade transcreveu o teor do dito telegrama para o Dr Alfredo Britto.

A Repartição Geral dos Telegraphos” expediu sob n. º 3880, do Rio de Janeiro, em 24 de julho de 1906, às 7 horas e 7 minutos, telegrama reservado para o Dr. Alfredo Britto, no seguinte teor: “Recebi seguinte telegramma: Impossivel deficiencia recursos prestar homenagens devidas glorioso scientista presado mestre Nina Rodrigues, pedimos respeitosos conceder verba transporte cadaver Brasil, exequias – Mocidade Escola Superior.”

“Estando quasi esgotada verbas eventuais, por onde poderia correr essa despeza, tenho difficuldade em attender esse pedido. – Entretanto, desejando muito satisfazer e auxiliar academicos digno empenho prestar homenagens funebres e transportar cadaver nosso saudoso amigo, peço informeis qual importancia necessaria auxilio solicitado – cordeaes saudações – Felix Gaspar.”
“Acta da sessão da Congregação em 25 de Julho de 1906.

As 10 horas o Corpo docente da Faculdade de Medicina da Bahia sob a presidencia do snr’ director, o Dr. Alfredo Britto ...

O Dr. director deu sciencia á Congregação de diversos telegrammas, cartas e cartões de condolencias pelo fallecimento do Dr. Nina Rodrigues.

Deu tambem sciencia que deve chegar no Aragon o corpo do mallogrado Dr. Nina Rodrigues.

O Dr. Deocleciano appresentou a seguinte proposta, que foi unanimemente approvada: “Proponho que fique a mesma commissão nomeada para dar pezames á ex.ma familia do Dr. Nina Rodrigues encarregada de resolver sobre as homenagens que devem ainda a Congregação, por occasião da recepção do corpo e enterramento.”

No dia 31 de julho, a “Repartição Geral dos Telegraphos” expediu do Rio de Janeiro, sob n.º 4958, às 11 horas e 20 minutos telegrama reservado, omitindo-se o nome do destinatário: “Com immenso pezar deixo de providenciar acerca exequias Dr. Nina Rodrigues por falta credito orçamentario ou autorização em lei despeza dessa natureza e de tal monta conviria fosse autorisada pelo Congresso Nacional; nesse caso seria immediam.te executada conforme tive occasião declarar hontem ao presidente camara deputados ao Dr. Miguel Calmon com os quaes conferenciei nesse sentido. Sauds. affectuosas = Felix Gaspar Ministro Justiça”

A “repartição Geral dos Telegraphos expediu sob n.º 91, às 5 horas e 40 minutos de 1.º de agosto do Rio de Janeiro, mensagem para o Dr. Alfredo Britto – Bahia: “Quando recebi sua ultima carta havia já prestado informações solicitadas pelo Congresso, o que inhibiu pedir augmento credito mesma occasião – Entretanto, tomando em consideração quanto me ponderou, convidei para uma conferencia presidente camara deputados e Dr. Miguel Calmon aos quaes expuz quanto ocorre, incumbindo se este ultimo tomar iniciativa uma providencia na camara attender sua exposição. Saudações – Felix Gaspar Ministro Justiça.”

Aviso de n.º 1330, 2.ª “Secção da Directoria do Interior, do Ministerio da Justiça e Negocios Interiores”, do Rio de Janeiro, 4 de agosto de 1906, estava exarado nos seguintes termos: “Accusando o recebimento do officio n.º 675, de 17 de julho ultimo, no qual communicaes o fallecimento do D.r Raymundo Nina Rodrigues, lente da cadeira de medicina legal dessa Faculdade, cabe-me apresentar á respectiva Congregação os meus sentimentos de profundo pezar pelo infausto acontecimento. Saúde e fraternidade.
Felix Gaspar de Barroso Almeida.”


A “Repartição Geral dos Telegraphos” expediu telegrama sob n.º 895, às 9 horas de 6 de agosto, do Rio de Janeiro para o Dr. Alfredo Britto, “Director Faculdade Medicina Bahia: “Foi votado hoje 2.ª discussão projecto concedendo credito Faculdade Medicina Bahia concedida dispensa, entrará amanhã 3ª, sendo apresentada emenda augmentando credito de accordo sua informação. Saudações. Paula Guimarães, Presidente da Camara.”

“Acta de 20 de Setembro de 1906.

Expedientes: Foi lido o expediente: officio do ex.mo Ministro do Interior apresentando à Congregação pezames pelo fallecimento do Dr. Nina Rodrigues.
Aviso do Ministerio do Interior n.º 1145 de 2 de Julho approvando o plano apresentado para o estabelecimento do serviço de exames tanatológicos n’esta Faculdade.”

Sexta-feira, 10 de agosto de 1906 – Na cidade da Bahia, Brasil, a temperatura máxima era de 24º,5; a mínima, de 23º,0 e a média, 23º,87; ventos moderados, rumo S, SE, E; Chuvas durante toda a manhã, até a 1 hora da tarde; céu carrancudo e nublado, nimbos prenhes d’água; A noite prometia ser toldada, cintilando poucas estrelas.

Em uma rua ladeirenta, a Ladeira de São Bento, estava situada uma casa de residência de dois andares e um sótão, de número 7, a quarta casa nas cercanias do renomado e respeitável Hotel Sul Americano, de propriedade do sr Antonio Alves, o hotel preferido das classes abastadas de viajantes nacionais e estrangeiros e o mais freqüentado pela sociedade mais “raffiné” da Bahia. O dito sobrado mirava para o casario defronte das moradias de paredes meias, ornadas com belos gradis paralelos, fronteiros à entrada das casas, assemelhados às residências, com suas airosas grades, também paralelas, adornadas artisticamente, instaladas em frente aos portais dos característicos e conhecidos prédios da King’s Road, em Chelsea, Londres e em muitas outras ruas típicas londrinas.

O sobredito sobrado ficava nas vizinhanças do vetusto Mosteiro de São Bento, que teve eleito seu primeiro Abade, frei Antonio Ventura, pela Congregação de Portugal em Capítulo Geral de 1584. O referido mosteiro entesta o limite da parte de cima da ladeira, monastério ermo e ascético, de corredores claustrais quedos, arcarias, pilares e paredes altíssimas e conventuais, para a abstração e devaneio do espírito daqueles que andam em busca da paz de Cristo, em ambiente de solidão penumbrosa e côncavo silêncio de gravidade clerical, quebrado, de quando em vez, pelo salmear dos monges altas noites, na Sala Capitular, e pelo sino que, pela manhã, dava vagarosa e lugubremente o dobre dormente das almas,

A rua da Ladeira de São Bento amanheceu naquele dia de 10 de agosto queda e melancólica. A viação estava quase a parar. Podia-se escutar a salmodia entoada pelos monges beneditinos e a primeira parte do ofício divino desde o primeiro alvor da manhã. O pequeno Largo de São Bento estava despovoado. Os sobrados da Ladeira de São Bento, eram elegantes e ostentosos, de eclética arte de edificar. Em sua maioria, notava-se as casas de morada com suas enormes janelas de peito e janelas de sacada cerradas, fabricadas e guarnecidas com ornatos de figuras formadas pelo cruzamento de dois arcos iguais, que se cortavam na parte superior, em belo estilo arquitetônico gótico de ogiva.

De quando em vez, piedosas senhoras e senhorinhas janelavam, correndo os dedos por grossas contas do santo rosário, abatidas e tristonhas, lágrimas toldando os olhos, notadamente os moradores do nobre e vasto sobrado de três andares e sótão, de frontaria belíssima, adornada com lusitanos azulejos, apresentando, ao rés do pavimento, um alto portal ladeado de quatro janelões de sacada; no segundo andar, igual número de janelões de peito, providos com harmoniosos peitoris avarandados e artisticamente gradeados, e três idênticas aberturas no nível correspondente ao espaçoso sótão, todos em estilo de ogiva gótica. O imponente casarão apalaçado ficava situado bem em frente da saída da rua ladeirenta que passava por detrás dos muros posteriores do provecto mosteiro, onde funcionaria, na antiga portaria da igreja abacial, a partir do ano de 1909, a Tipografia Beneditina, que seria fundada e instalada pelo abade D. Majolo.

Os relógios da casas de residência da rua da Ladeira de São Bento resmungavam sornamente as horas: eram 2 horas e 45 minutos da tarde.

No mesmo horário, o sobrado, de número sete à Ladeira de São Bento, distrito de São Pedro encontrava-se vazio, cerrado e amortalhado por funéreo crepe de tristeza e desolação.

Edificado em terreno próprio, medindo de frente seis metros e quarenta e cinco centímetros, dividindo-se por um lado com casa de Manoel Joaquim de Carvalho e, pelo outro com quem direito tiver, contendo no andar superior três janelas com grade de ferro e no térreo duas janelas de peitoris e porta; no pavimento nobre, observava-se duas salas sendo uma de visitas e outra para jantar e dois quartos sótão com três quartos espaçosos; andar térreo com duas salas e dois quartos, cozinha, alcova de banho e outros cômodos, tendo em frente da casa um pequeno jardim cercado de grades de ferro e portão ao lado.

Notava-se, na sala de visitas um sofá, duas cadeiras de braço, doze singelas, duas brancas com enfeites, tudo usado.

O ambiente da sala de visitas era ornado com gracioso par de jarras da Índia, enfeitados. Nas proximidades, um espelho oval de madeira dourada. Em um canto da dita sala, estava um magnífico piano alemão, usado, e do fabricante “Schiedmayer”. Compunham o dito cômodo dois quadros dourados para decoração de sala e no canto, e em local discreto, duas escarradeiras.

Na sala de jantar, eram vistos um sofá e doze cadeiras austríacas, já usadas; duas cadeiras de vime; um aparador com pedras e espelhos; um guarda-louças com pedra e espelhos e duas “étagères”, (prateleiras – N.A.); dois porta cristais; um relógio de parede usado; uma mesa de jantar, de vinhático; um meio aparelho de louças para jantar; quatro estantes em uma das quatro, à jacarandá, próprias para livros. Biblioteca: era composta de mil preciosos e raros volumes de obras de medicina e de literatura.

Naquele sobrado modesto, de feição austera de paz estudiosa, moravam o Dr. Raymundo Nina Rodrigues com sua esposa, D. Maria Couto Nina Rodrigues e a filha Alice.

Desolados ao extremo, clientes e admiradores do extinto fixavam a vista em direção ao prédio do Gabinete Médico-Cirúrgico do Dr. Nina Rodrigues, sito à rua Conselheiro Saraiva, n.º 36, o qual atendia “especialmente molestias do peito, estomago e coração” O Dr. Nina Rodrigues trabalhava no consultório em parceria com o seu colega Dr. Frederico de Castro Rebello Koch, que tinha casa de morada na Graça e atendia “especialmente cirurgia e molestias de creanças.” As consultas eram diárias e o atendimento das 2 às 4 horas da tarde e aceitavam chamados a qualquer hora.

O Dr. Frederico de Castro Rebello Koch (1880-1919), baiano, graduou-se em Medicina, em 1900, pela Faculdade de Medicina da Bahia. Pela mesma Faculdade, formou-se, anteriormente, em Farmácia. Foi interno e assistente de Clínica Pediátrica; Professor extraordinário e Professor substituto de Terapêutica; Professor catedrático de Farmacologia. Tese inaugural: Abscesso do fígado e seu tratamento cirúrgico. Bahia, 1900.

 
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