HISTÓRIA DA MEDICINA
artigo 57

O falecimento do Professor Doutor Raymundo Nina Rodrigues,
em Paris, a 17 de Julho de 1906
e a narrativa da chegada
do cadáver ao porto desta capital, no dia 10 de agosto do mesmo ano.
A exposição minudenciosa das exéquias do célebre cientista brasileiro.

Dr. Antonio Carlos Nogueira Britto
Vice-presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins.
Fundado em 29 de novembro de 1946
Parte III


Sexta-feira, 10 de agosto de 1906
– Estava navegando em mar picado, demandando à barra da Baía de Todos os Santos, o magnificente “1iner” Aragon, da afamada Royal Mail Steam Packet Company, a companhia marítima Mala Real Inglesa, representada nesta capital pela sociedade comercial F. Stevenson & e C.

O Aragon levantou ancora de Southampton, com escalas em Cherbourg, Vigo, Lisboa, Ilha da Madeira, Pernambuco e cidade da Bahia, e depois da demora precisa, seguirá para o Rio de Janeiro, Santos, Montevidéu e Buenos Aires.

O “steamer” tinha 9.588 toneladas e foi construído em 1905 por Harland e Wolff, em Belfast e lançada em 23 de fevereiro de 1905 pela condessa Fitzwilliam. O paquete tinha capacidade para transportar 306 passageiros na 1.ª classe; 66 na segunda classe e 632 na terceira classe. O Aragon foi o primeiro “liner” da companhia a ser equipado com hélices gêmeas. Fez sua viagem inaugural a 14 de julho de 1905, de Southampton para os portos brasileiros. Foi torpedeado e afundado por submarino inimigo, a 30 de dezembro de 1917, nas costas de Alexandria, Egito, na primeira guerra mundial, com 2.700 pessoas a bordo, com perda de 610 vidas. O “destroyer” HMS Attack, que foi em seu socorro, também foi afundado pelo mesmo submarino, durante a operação de salvamento.

Cf. o belíssimo “site” http://www.merchantnavyofficers.com.rm2.html, que transporta o internauta para a fascinante e nostálgica época dos suntuosos “liners” britânicos.

A mor parte dos viajores mantinha-se precatados do pirajá e da ventaneira, que persistiram até o início da tarde, sob a tolda do “spardeck” do vapor, porquanto nimbos plúmbeos e prenhes d’água, cinzentos e densos, estendiam-se pelo céu carrancudo. A natureza não estava em galas. Não se escutava a plácida respiração do vento e as brisas já não mais ciciavam nas alturas. O “liner” balouçava com o mar áspero. Os “touristes” erravam pelo tombadilho do paquete, ou se apoiavam na amurada, estesiando as narinas com o hálito iodado da maresia, ou se recostavam sornamente em “chaises-longues”, “pliants” e “fauteuils enfileirados no “spardeck”. Alongavam a vista para a esbelta e bela cidade de dois pavimentos, qual bíblico presepe. Alguns binoculizavam vagamente o majestoso e incomum cenário da costa ridente que se espraiava ainda distante.

Mirando o cenário distante da cidade da Bahia, quedavam-se, absortos e extasiados, os passageiros que deveriam desembarcar na capital do estado da Bahia: Ms. Rose Hapan, Mr.Thomaz Emmerson e Mr. George Johnstone, ingleses, procedentes de Southampton; capitão Argolo Ferrão e sr. Jaime Ferrão, brasileiros, chegados de Cherbourg; sr. Balsimino Antelo, sr. Domingo Jose Alvar; D. Concepcion Barral, D. Elisa Barral, D.Maria Alfaro Vilar, D. Maria Domingues, sr. Victor Barral, sr. Jose Manuela (sic) Perez, espanhóis, vindos de Vigo; sr. José Gomes Costa Santos, brasileiro, procedente de Pernambuco e Mr. C. M. Savony e Mr. C. R. Savony, ingleses, chegados de Pernambuco.

Súbito cessou no espírito e coração dos passageiros o sentimento de enlevo e admiração pela paisagem paradisíaca da cidade da Bahia, avistada do mar, que resplandecia airosamente, à medida que a chuva e o mau tempo tornavam-se amenos; os viajores perceberam a ausência dos companheiros de viagem, brasileiros, que se achavam recolhidos nas câmaras do paquete, lacrimosos e tristonhos, e amortalhados pelo crepe do luto, de profundo sentimento de tristeza e de saudade. A sensação de encanto e deleite dos extasiados “touristes” foi toldada pela consternação e sentida solidariedade, que os cobria de tristeza morta. E alguns, quedando-se cismativos, oravam pela paz, resignação e paciência com os sofrimentos dos companheiros retirados nos camarotes: D. Maria Couto Nina Rodrigues, sua filha Alice e o cunhado, primeiro-tenente do exército Dr. Themistocles Nina Rodrigues.

O esvelto capitão britânico do Aragon, de belas cãs de aspecto argenteado, ruminando o seu cachimbo, ordenou ao timoneiro do paquete e ao piloto. A sereia de bordo berra longa e melancolicamente; a casa de máquinas diminui o ofego dos êmbolos; as gigantescas hélices gêmeas reduzem o giro, ornando o mar cachoando em longa esteira de alvas e rendilhadas espumas e o “liner” amarrou à terra da cidade da Bahia no ancoradouro dos vapores mercantes, lá pelas 3 ½ horas da tarde.

O Aragon foi o único paquete transportando passageiros a aportar na capital do estado da Bahia no dia 10 de agosto. Nenhuma verga e chaminés de vapores nacionais ou de outros países, conduzindo viajadores, eram avistadas na vastíssima Baia de todos os Santos. Apenas navios cargueiros balouçavam, em tempo borrascoso, na baía bela. Sumacas de dois mastros, velhas alvarengas e algumas galeotas e lanchas para navegação costeira, percorriam o mar picado, em movimento circular, contornando o gigantesco Aragon, que se movia mui brandamente sob chumbadas nuvens.

Imediatamente, a bordo do escaler Nuno de Andrade e em lanchas partiram para o dito local a comissão central das escolas superiores, professores das ditas e muitas outras pessoas, com o escopo de receberem o volume que continha o caixão que guardava os “sinais da vida” do Dr. Nina Rodrigues. Este volume se achava no porão da proa do vapor.

Logo depois da visita da Inspetoria da Saúde do Porto, as comissões entraram no Aragon, dirigindo-se imediatamente ao encontro da família Nina Rodrigues para manifestar o imenso pesar da mocidade acadêmica da Bahia.

Encaminharam-se todos logo ao camarote em que vinha a desolada viúva, recebendo, à entrada, as condolências o irmão do pranteado cientista, o primeiro-tenente Dr. Themistocles Nina Rodrigues.

O estado da saúde da viúva não lhe permitiu receber as manifestações de pêsames dos que a foram cumprimentar, tratando-se logo de retirar o caixão, para o que já se achavam a bordo os representantes do fisco, tendo, sem tardança, o despachante sr. Raul de Oliveira solicitado o despacho.preciso.

Ao depois, às comissões foram entregues dois volumes, contendo: um o esquife e o outro capelas mortuárias, pelo despachante sr. Raul de Oliveira e pelo Dr. Antonio Christovam de Freitas, representante do fisco. O caixão em que vinha o ataúde, bem como o volume em que guardavam as diversas grinaldas e coroas estavam assim assinalados: o primeiro, com o esquife, com a marca N. R. 1, e o segundo, contendo as coroas, N. R. 2 – Bahia. Já estavam sendo retirados do porão de proa.

Levada a efeito a lingada dos sobreditos volumes por meio de roldanas, foram eles colocados na pequena galé armada para essa finalidade e transportados para o Arsenal de Marinha, rebocada pelo vapor Itaparica. Ao chegar à repartição da Marinha, retirou-se do envoltório o caixão fúnebre, que foi transportado por professores e alunos das escolas superiores, para o coche de 1.ª classe, estacionado em frente ao portão principal do Arsenal.

Ao ser retirado o esquife para bordo da galeota da alfândega, às 3 e 55, o ajudante interino do guarda-mor entregou ao Dr. Guilherme Rebello os documentos, que havia recebido do comandante do Aragon: atestados de óbito, dando o falecimento a 17 de julho, às 4 ½ horas da manhã, na rua Laffayete, n,º 49; do prefeito da polícia; do embalsamamento; do comissário de polícia, afirmando a colocação de cadáver no esquife; da prefeitura do departamento do Sena e do consulado dos Estados Unidos do Brasil.

O caixão foi aberto por carpinteiros da alfândega e pelo eletricista da Faculdade de Medicina da Bahia, em presença dos empregados da alfândega srs. Amancio Costa e Pedro Espinheira, que verificaram o selo consular.

O cadáver do Dr. Nina Rodrigues chegou encerrado em um caixão de zinco e este em outro de carvalho envernizado de amarelo, com braçadeiras de ferro niquelado, tendo três alças de cada lado e uma á cabeceira e outra nos pés.

Às 4 horas e 5 minutos retirou-se a família do Dr. Nina Rodrigues, na lancha Nuno de Andrade, acompanhada até a alfândega pelos Drs. Alfredo Britto, Frederico Koch, conselheiro Carneiro da Rocha, Braz do Amaral, Guilherme Rebello e Raymundo de Andrade, médico da saúde do porto

Da alfândega seguiram as desoladas viúva e filha do ilustre morto, a carro, acompanhadas pelo Dr. Alfredo Britto para a casa de sua residência, à Ladeira de S. Bento.

Organizado numeroso cortejo fúnebre, constituído de alunos das Escolas de Medicina, Engenharia e Direito, com os respectivos estandartes envoltos em triste crepe, desfilou o coche pelas ruas do Arsenal de Marinha, Alfândega, Princesa, Santa Bárbara, Barão Homem de Mello, Praça Castro Alves e Ladeira de S. Bento.

 
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